25 de julho de 2019

CINQUENTA ANOS DE AMOR


Esta crônica foi escrita para marcar a data de 25 de julho de 2006 quando se completaram cinquenta anos de meu casamento com Nancy.
Eu a republico hoje ao completar sessenta e três anos de casados.

Num ensolarado domingo dos últimos dias de outubro de 1951, meu irmão Antonio e eu, na lancha que meu pai trouxe de Fernando de Noronha, denominada Eunice, saímos a reconhecer o belo rio Tapajós cujas águas nos eram completamente desconhecidas. Embora nascido em Santarém e banhado com águas trazidas em cântaros das margens do rio azul, fui daqui levado antes que completasse o primeiro ano de vida. As águas do imenso rio nos encantavam e navegávamos em ziguezague pelo espelho azul gozando as delícias do passeio, felizes por não estarmos enfrentando as imensas ondas do mar de Noronha.

A lancha fora construída exatamente para enfrentar ondas oceânicas e seu casco, abaulado como meia-banda de cacau, empurrava água para os lados levantando marolas tão mais altas quanto mais acelerávamos seu potente motor. Quando passávamos rente à praia, no trecho que se estende de onde hoje existe uma quadra de basquete até o Mascotinho, quase fizemos alagar uma canoa movida por motor de popa, pilotada pelo Abel que na época era empregado do Ninito Veloso e hoje ainda trabalha na firma do Paulo Correa. A canoa estava cheia de crianças pequenas, filhos de Pedro e Geny, que vieram de Belém passar férias e aproveitavam aquela bela manhã para um passeio tranquilo acompanhadas da tia, uma jovem apenas pouco mais velha que elas cujo nome vim a saber pouco depois, Nancy. As crianças choravam desesperadamente, com medo do naufrágio, Abel nos lançava olhares furiosos e Nancy gritava alucinadamente ordenando que nos afastássemos.
Antes que o desastre acontecesse, o bravo piloto conseguiu embicar a canoa na praia, diante da casa do Ninito, no canto da praça São Sebastião, salvando a todos dos perigos que dois desatinados rapazes ofereciam à navegação fluvial. Antonio e eu poitamos a lancha diante de onde é hoje a sede do PT. Fomos até a casa ao lado, que pertencera a Alarico Barata e onde esperávamos o fim das reformas de nossa residência na praça defronte da Usina de Luz.
Pegamos nosso enorme cachorro Tico, também trazido de Noronha e nos dirigimos à praia onde estavam Nancy e as crianças com a intenção de dizer que não fora nossa intenção assustar os pequenos, nem a ela. Queríamos estabelecer relações cordiais, mas o pequeno Biriba, cachorrinho de estimação de Nancy, mais atrevido do que feroz, ofereceu ao Tico uma sessão de latidos que ainda me ferem os ouvidos, o que só fez irritar ainda mais a bela jovem e atemorizar novamente as crianças. Realmente, não era nosso dia de relações sociais.
Tivemos, meu irmão e eu, de afastar o Tico. Essa foi a segunda ordem que Nancy me deu em menos de uma hora e até hoje continuo obedecendo, mas ela estava tão aborrecida por causa da aflição das crianças que nosso relacionamento não passou daí. Afilhada de dona Ciloca e de Paulo Rodrigues dos Santos, Nancy passava diante de nossa casa sempre que lhes ia tomar a benção, oportunidade que tínhamos de trocar olhares interessados e indagadores.
Somente começamos a namorar dois anos depois, quando começou a instalação da Empresa Telefônica de Santarém e eu ajudava meu pai no empreendimento, primeiro tentando convencer as pessoas a subscreverem cotas do capital, depois acompanhando os trabalhos dos técnicos vindos do Rio de Janeiro com o propósito de assumir a manutenção da central e da rede. Foi a discussão, testemunhada por Nancy, pela destruição dum pedaço de cabo telefônico, depois da qual fui até a casa dela tomar um copo d’água, que quebrou o gelo. Ela lecionava no Frei Ambrósio e meu irmão Miguel era seu mais bem comportado aluno. Foi ele que lhe levou meu primeiro convite para o cinema.
A partir daí passamos, Nancy e eu, a ir juntos ao Cinema Olímpia e fazer par constante no Recreativo, aos sábados à noite ao som da Euterpe, banda de seu Toscano e nas matinês domingueiras ao som de vitrola. Até escolhemos um foxtrote, “Por tua causa”, como nossa música, com a promessa de a dançarmos sempre que tocasse, mesmo que estivéssemos brigados ou não fossemos mais namorados. Isto de fato aconteceu. Fiquei com ciúmes por ela estar dançando com Nascimento, namorado da Zita. O coitado apenas relatava as cartas que Zita lhe mandara de Portugal. Dançava com Nancy para se sentir mais próximo da noiva, para matar um pouquinho as saudades.
Vi a cena e sai do Recreativo. Já passara do Correio quando a Euterpe atacou “Por tua causa”. Voltei na mesma pisada e, todo empertigado, cumpri a promessa da contradança. Mas não resisti à ternura de Nancy e o ciúme tolo se apagou. Tive sorte. Quando ela me viu ir embora também se dispôs a sair. Minha mãe lhe pediu que ficasse, aproveitasse o baile, que eu logo voltaria. Sempre achei que fora o Loris Figueira quem alertara o líder da banda. Só muitos anos depois Nancy me confessou que ela mesma pedira ao Toscano que tocasse nossa música. Tempos românticos aqueles.
Foi no casamento de Tereza Miléo, uma das mais brilhantes e melhor comentadas festas daquele ano de mil novecentos e cinquenta e três, que decidi me casar com Nancy. Se ela me aceitasse, é claro. Nancy era professora no Colégio Frei Ambrósio e Tereza sua diretora. Além disto, meu pai era muito amigo da família Miléo. Nossa presença era obrigatória. Estávamos, Nancy e eu, na sacada do belo sobrado em frente ao trapiche, hoje substituído pelo tão protelado porto turístico, olhando o vazio mal iluminado da Praça do Pescador, que então não existia, conversando e apreciando os convidados que ainda chegavam. A noite era muito agradável, havia música no interior do salão e eu estava apaixonado. Foi então que começamos a falar de namoro firme, quase noivado, a traçar planos para o futuro comum, a discutir o tamanho da família que gostaríamos de ter, a fazer juras de amor.
Mas eu não estava muito feliz em Santarém. Minhas experiências como plantador de hortaliças e verduras foram todas frustradas pela enormidade de plantas invasoras e insetos vorazes que existe na Amazônia. Além disto, eu perdera toda minha riqueza, meia centena de cabeças de gado em sociedades no Lago Grande. Na cheia de cinquenta e três, enquanto eu levava o gado de meu pai, dos Remédios, na várzea em frente à cidade, para a terra firme do Lago da Praia, no Arapiúns, minhas rezes permaneciam alagadas no Lago Grande e quando eu lá cheguei só pude embarcar a metade. A viagem foi a mais triste da minha vida, observando milhares de rezes mortas boiando no Lago ou rio abaixo, atirando fora do batelão as minhas que morriam. A novilha que sobreviveu foi comida por onça. Assim, desisti da vida agrária e resolvi ir para o Rio de Janeiro estudar e comecei a me preparar para isto. Senti que Nancy não apreciara a ideia, mas, compreensiva e generosa, me incentivava assim mesmo.
Ao final da enchente, numa viagem de volta para casa, dos Remédios, onde eu construíra maromba para abrigar o gado na próxima cheia, nossa canoa à vela deslizava pelo o rio levemente encrespado numa tarde ensolarada. Eu conversava com o caboclo que me fora buscar quando a sonoridade dos sinos da matriz me chegou aos ouvidos. “É o enterro do Xixito”, disse ele, “foi assassinado”. A notícia foi um choque. Acontecimentos dessa natureza eram raros em Santarém, a tragédia envolvia pessoas importantes e o morto era marido de Dulce, irmã de Nancy. O acontecimento afetou profundamente a viúva de Xixito, ex-vereador Manoel Maria Macedo Gentil. Ela foi com os filhos pequenos para o Rio e só retornou a Santarém uma única vez.
Cito o fato pela grande importância que Dulce tem em nossa vida, minha, de Nancy e nossos filhos e netos. Aos noventa e tantos anos, Mana Dulce continua saudável, com espírito alerta, alegre, cheia de verve inteligente e fácil. Não é de admirar, Dona Marcolina, mãe de onze filhos dos quais Nancy é a caçula - sou primogênito de onze irmãos – foi matrona venerável da família Ayres, repleta de mulheres admiráveis: ela própria e suas filhas, Edith que permaneceu solteira, Lídia Matos, Dulce Gentil, Geny Pontes, Zilah Veloso, Mariinha Mendonça e Nancy, a caçula, minha companheira. São mulheres cuja maior virtude e galardão é a enorme capacidade de amar, de dar amor, de fazer com que os outros se sintam amados.  Amor doado com a maior simplicidade, a mais desprendida e comovente generosidade.
Terminada a montagem da central telefônica, instalada no sobrado da esquina de Siqueira Campos com Mártires, eu mesmo soldei os últimos fios e, antes da inauguração oficial, fiz a primeira ligação telefônica automática jamais realizada em Santarém. Liguei para a casa de Zilah e Ninito. Nancy mesma atendeu ao tão esperado toque. Conversamos, comentamos a novidade inaugural e marcamos encontro para depois do jantar. Naquele tempo, o bruxuleio que a sobrecarregada caldeira da Usina de Luz conseguia colocar nas lâmpadas de Santarém ia só até às nove da noite. Depois disso a cidade apagava e nenhuma moça de família namorava. Eu tentava esticar a visita, mas a atenta Zilah mandava Ester e Júlia nos rodearem, pigarreando, tossindo e, por último, avisando imperativamente que era hora de dormir. Só me restava dar um último abraço, roubar um beijo sorrateiro e me despedir.
Os festejos de Natal daquele ano foram felizes e pesarosos ao mesmo tempo. Aproveitávamos ao máximo os momentos de estarmos juntos, pressentindo e temendo as saudades que já afloravam. A despedida foi triste e cheia de promessas. Promessas, ah... promessas.
Três anos depois, em agradável manhã de domingo, quando já havia algum tempo que retornáramos da missa, tocaram a campainha de nosso conjugado na Praia de Botafogo. Fui à porta atender e tive a agradabilíssima surpresa de ver diante de mim a figura simpática e risonha de Frei Prudêncio. Ele estava de passagem pelo Rio e nos fazia o agrado da visita. O frade era, de longa data, amigo de nossas famílias, das quais fizera batizados, primeiras-comunhões e uniões. Recebemos o amigo, confessor e conselheiro com muita alegria. Frei Prudêncio oficiara nosso casamento, agora, brincava com nossa filha Bia em seu colo.
Em julho de 1956, aproveitei a oportunidade de minhas primeiras férias no emprego que obtivera, logo ao chegar ao Rio, recomendado que fora à empresa fornecedora do sistema telefônico de Santarém e voltei ansioso por garantir que Nancy e eu viveríamos juntos para sempre. A caçula, embora a mãe morasse no canto da rua dos Artistas com a praça São Sebastião, desde criança fora criada pela irmã na casa do canto oposto, à beira-rio, o que provocou a dúvida: Nancy morava com Zilah e meu pai não sabia se deveria fazer o pedido ao marido desta, Ninito Veloso. Meus pais visitaram Dona Marcolina e, em meu nome, pediram formalmente a mão de Nancy em casamento. Tudo conforme a praxe que então se obedecia rigorosamente.
Proclamas dispensados, no dia vinte e cinco de julho de mil novecentos e cinquenta e seis, na casa de meus pais, ali no meio da praça Rodrigues dos Santos, Doutor Cacela oficiou o casamento civil e Frei Prudêncio o religioso. A noiva, linda em seu vestido branco, foi trazida por Ninito ao som da valsa nupcial briosamente tocada ao piano por Dona Beatriz, minha mãe. Eu ardia em febre de quarenta graus e mal me punha em pé. Dias depois embarcávamos para o Rio.
Tivemos uma série de quatro meninas, depois as gêmeas, finalmente o menino. Quando Junior já estava com pouco mais de dois anos, Nancy e eu, conversávamos na sacada de nosso apartamento na Gávea, quando observamos uma senhora que descia a Marquês de São Vicente com seu recém-nascido num carrinho. Nancy calou-se e acompanhou a mulher e a criança com o olhar até que a curva da rua os escondesse. Por algum tempo ficou pensativa e, quando a toquei no ombro, virou-se para mim e disse, com um misto de aceitação e saudade na voz: “ano que vem não teremos mais bebê em casa...”. Esta frase, naquele contexto, mostra perfeitamente a missão dessa generosa mulher. Nancy veio ao mundo para ser esposa dedicada, mãe amorosa, avó carinhosa, bisavó cheia de ternura. É isto que a faz ser o que é. Nancy cuida. Nancy ama. Nancy acarinha. Sua missão é amar.
Mas Nancy é firme. É firme no caráter, firme na fé, firme nas convicções, firme na ética e na moral, firme em perseguir o que quer. Essas virtudes se aliam às muitas outras que possui e fazem dela pessoa excepcional. Ela é responsável por estarmos juntos e bem, ela quis isto e não permitiu que os tortuosos caminhos da vida nos afastassem desse objetivo. Porque ela mesma me declarou que sua ambição de vida era ficar bem velhinha junto comigo para cuidar de mim, para que cuidássemos um do outro, para que nos amássemos eternamente.
União de cinquenta anos, bodas de ouro, é extraordinária benção divina. Muito poucos são os privilegiados por esse tesouro de bênçãos juntas e interligadas. Primeiro é o dom da vida, longa o suficiente para atingir esse estágio. Outra benção é o amor que une e envolve o casal de modo irreversível. Depois, os dons da tolerância, da apreciação da diferença, da aceitação do contraditório. O dom do perdão. O dom da capacidade de influenciar para retificar e aperfeiçoar a vida do companheiro. Finalmente, a benção de que sejam dois os abençoados.
Além disto, há a benção do destino, da sorte, dos acontecimentos fortuitos, aleatórios, imponderáveis e imprevisíveis que nos forçam os passos. Quando Nancy e eu decidimos que não pertencíamos aonde morávamos, que deveríamos retornar a Santarém, sentimento atávico nos guiou para o lugar ao qual pertencemos. É aqui na Terra da Felicidade, onde podemos ser quem somos, que retomamos o namoro antigo, refizemos o casamento de nossos destinos e sublimamos o amor original. É aqui que nos amamos.
E se isto parece ao amado leitor alguma deslavada e pública declaração de amor, esteja certo de que é isto mesmo, a mais desastrada e incompetente, porém a mais profunda, sincera e fervorosa declaração de amor.





Um comentário:

Modos de pensar: cultura, indumentária e figurino disse...

A mais linda e perfeita declaração de amor, papai!