30 de janeiro de 2007

Cinqüenta Anos de Amor

Sebastiao Imbiriba*

Num ensolarado domingo dos últimos dias de outubro de 1951, meu irmão Antonio e eu, na lancha que meu pai trouxe de Fernando de Noronha, denominada Eunice, saímos a reconhecer o belo rio Tapajós cujas águas nos eram completamente desconhecidas. Embora nascido em Santarém e banhado com águas trazidas em cântaros das margens do rio azul, fui daqui levado antes que completasse o primeiro ano de vida. As águas do imenso rio nos encantavam e navegávamos em ziguezague pelo espelho azul gozando as delícias do passeio, felizes por não estarmos enfrentando as imensas ondas do mar de Noronha.

A lancha fora construída exatamente para enfrentar ondas oceânicas e seu casco, abaulado como meia-banda de cacau, empurrava água para os lados levantando marolas tão mais altas quanto mais acelerávamos seu potente motor. Quando passávamos rente à praia, no trecho que se estende de onde hoje existe uma quadra de basquete até o Mascotinho, quase fizemos alagar uma canoa movida por motor de popa, pilotada pelo Abel que na época era empregado do Ninito Veloso e hoje ainda trabalha na firma do Paulo Correa. A canoa estava cheia de crianças pequenas, filhos de Pedro e Geny, que vieram de Belém passar férias e aproveitavam aquela bela manhã para um passeio tranqüilo acompanhadas da tia, uma jovem apenas pouco mais velha que elas cujo nome vim a saber pouco depois, Nancy. As crianças choravam desesperadamente, com medo do naufrágio, Abel nos lançava olhares furiosos e Nancy gritava alucinadamente ordenando que nosafastássemos.

Antes que o desastre acontecesse, o bravo piloto conseguiu embicar a canoa na praia, diante da casa do Ninito, no canto da praça São Sebastião, salvando a todos dos perigos que dois desatinados rapazes ofereciam à navegação fluvial. Antonio e eu poitamos a lancha diante de onde é hoje a sede do PT. Fomos até a casa ao lado, que pertencera a Alarico Barata e onde esperávamos o fim das reformas de nossa residência na praça defronte da Usina de Luz.

Pegamos nosso enorme cachorro Tico, também trazido de Noronha e nos dirigimos à praia onde estavam Nancy e as crianças com a intenção de dizer que não fora nossa intenção assustar os pequenos, nem a ela. Queríamos estabelecer relações cordiais, mas o pequeno Biriba, cachorrinho de estimação de Nancy, mais atrevidodo que feroz, ofereceu ao Tico uma sessão de latidos que ainda me ferem osouvidos, o que só fez irritar ainda mais a bela jovem e atemorizar novamente a scrianças. Realmente, não era nosso dia de relações sociais. Tivemos, meu irmão e eu, de afastar o Tico. Essa foi a segunda ordem que Nancy me deu em menos de uma hora e até hoje continuo obedecendo, mas ela estava tão aborrecida por causa da aflição das crianças que nosso relacionamento não passou daí.

Afilhada de dona Ciloca e de Paulo Rodrigues dos Santos, Nancy passavadiante de nossa casa sempre que lhes ia tomar a benção, oportunidade que tínhamos de trocar olhares interessados e indagadores. Somente começamos a namorar dois anos depois, quando começou a instalação daEmpresa Telefônica de Santarém e eu ajudava meu pai no empreendimento, primeiro tentando convencer as pessoas a subscreverem cotas do capital, depois acompanhando os trabalhos dos técnicos vindos do Rio de Janeiro com o propósitode assumir a manutenção da central e da rede.

Foi a discussão, testemunhada por Nancy, pela destruição dum pedaço de cabo telefônico, depois da qual fui até a casa dela tomar um copo d’água, que quebrou o gelo. Ela lecionava no Frei Ambrósio e meu irmão Miguel era seu mais bem comportado aluno. Foi ele que lhe levou meu primeiro convite para o cinema. A partir daí passamos, Nancy e eu, a ir juntos ao Cinema Olímpia e fazer par constante no Recreativo, aos sábados à noite ao som da Euterpe, banda de "seo"Toscano e nas matinês domingueiras ao som de uma vitrola. Até escolhemos um foxtrote, “Por tua causa”, como nossa música, com a promessa de a dançarmos sempre que tocasse, mesmo que estivéssemos brigados ou não fossemos mais namorados.

Isto de fato aconteceu. Fiquei com ciúmes por ela estar dançando com Nascimento, namorado da Zita. O coitado apenas relatava as cartas que Zita lhe mandara de Portugal. Dançava com Nancy para se sentir mais próximo de Zita, para matar um pouquinho as saudades.Vi a cena e sai do Recreativo. Já passara do Correio quando a Euterpe atacou “Por tua causa”. Voltei na mesma pisada e, todo empertigado, cumpri a promessa da contra-dança. Mas não resisti à ternura de Nancy e o ciúme tolo se apagou. Tive sorte. Quando ela me viu ir embora também se dispôs a sair. Minha mãe lhe pediuque ficasse, aproveitasse o baile, que eu logo voltaria. Sempre achei que fora oLoris quem alertara o líder da banda. Só muitos anos depois Nancy me confessou que ela mesma pedira ao Toscano que tocasse nossa música. Tempos românticos aqueles.

Foi no casamento de Tereza Miléo, uma das mais brilhantes e melhor comentadas festas daquele ano de mil novecentos e cinqüenta e três ou cinqüenta e quatro, que decidi me casar com Nancy. Se ela me aceitasse, é claro. Nancy era professora no Colégio Frei Ambrósio e Tereza sua diretora. Além disto, meu pai era muito amigo da família Miléo. Nossa presença era obrigatória. Estávamos, Nancy e eu, na sacada do belo sobrado em frente ao trapiche, hoje substituído pelo tão protelado porto turístico, olhando o vazio mal iluminado da Praça do Pescador, que então não existia, conversando e apreciando os convidados que ainda chegavam. A noite era muito agradável, havia música no interior do salão e eu estava apaixonado. Foi então que começamos a falar de namoro firme, quase noivado, a traçar planos para o futuro comum, a discutir o tamanho da família que gostaríamos de ter, a fazer juras de amor.

Mas eu não estava muito feliz em Santarém. Minhas experiências como plantador dehortaliças e verduras foram todas frustradas pela enormidade de plantas invasoras e insetos vorazes que existe na Amazônia. Além disto, eu perdera toda minha riqueza, meia centena de cabeças de gado em sociedades no Lago Grande. Na cheia de cinqüenta e três, enquanto eu levava o gado de meu pai, dos Remédios, na várzea em frente à cidade, para o Lago da Praia, no Arapiúns, minhas rezes permaneciam alagadas no Lago Grande e quando eu lá cheguei só pude embarcar a metade. A viagem foi a mais triste da minha vida, observando milhares de rezes mortas boiando no Lago e rio abaixo e atirando fora do batelão as minhas que morriam. A novilha que sobreviveu foi comida por onça. Assim, desisti da vida agrária e resolvi ir para o Rio de Janeiro estudar e comecei a me preparar para isto. Senti que Nancy não apreciara a idéia, mas, compreensiva e generosa, me incentivava assim mesmo.

Ao final da enchente, numa viagem de volta para casa, dos Remédios, onde eu construíra maromba para abrigar o gado na próxima cheia, nossa canoa à vela deslizava pelo o rio levemente encrespado numa tarde ensolarada. Eu conversava com o caboclo que me fora buscar quando a sonoridade dos sinos da matriz me chegou aos ouvidos. “É o enterro do Xixito”, disse ele, “foi assassinado”. A notícia foi um choque. Acontecimentos dessa natureza eram raros em Santarém, atragédia envolvia pessoas importantes e o morto era marido de Dulce, irmã de Nancy. O acontecimento afetou profundamente a viúva de Xixito, ex-vereadorManoel Maria Macedo Gentil. Ela foi com os filhos pequenos para o Rio e só retornou a Santarém uma única vez.

Cito o fato pela grande importância que Dulce tem em nossa vida, minha, de Nancy e nossos filhos e netos. Aos noventa e tantos anos, Mana Dulce continua saudável, com espírito alerta, alegre, cheia de verve inteligente e fácil. Não é de admirar, Dona Marcolina, mãe de onze filhos - aliás, sou primogênito de onze irmãos – foi a matrona venerável da família Ayres, repleta de mulheres admiráveis, ela própria e suas filhas: Edith que permaneceu solteira, Lídia Matos, Dulce Gentil, Geny Pontes, Mariinha Mendonça e Nancy, a caçula, minha mulher. São mulheres cuja maior virtude e galardão é a enorme capacidade de amar, de dar amor, de fazer com que os outros se sintam amados. Amor doado coma maior simplicidade, a mais desprendida e comovente generosidade.

Terminada a instalação da central telefônica, instalada no sobrado da esquina de Siqueira Campos com Mártires, eu mesmo soldei os últimos fios e, antes da inauguração oficial, fiz a primeira ligação telefônica automática jamais realizada em Santarém. Liguei para a casa de Zilah e Ninito. Nancy mesma atendeu ao tão esperado toque. Conversamos, comentamos a novidade inaugural e marcamos encontro para depois do jantar.

Naquele tempo, o bruxuleio que a sobrecarregada caldeira da Usina de Luz conseguia colocar nas lâmpadas de Santarém ia só até às nove da noite. Depois disso a cidade apagava e nenhuma moça de família namorava. Eu tentava esticar a visita, mas a atenta Zilah mandava Ester e Júlia nos rodearem, pigarreando, tossindo e, por último, avisando imperativamente que era hora de dormir. Só me restava dar um último abraço, roubar um beijo sorrateiro e me despedir.

Os festejos de Natal daquele ano foram felizes e pesarosos ao mesmo tempo. Aproveitávamos ao máximo os momentos de estarmos juntos, pressentindo e temendo as saudades que já afloravam. A despedida foi triste e cheia de promessas. Promessas, ah... promessas.

Três anos depois, em agradável manhã de domingo, quando já havia algum tempo que retornáramos da missa, tocaram a campainha de nosso conjugado na Praia deBotafogo. Fui à porta atender e tive a agradabilíssima surpresa de ver diante demim a figura simpática e risonha de Frei Prudêncio. Ele estava de passagem pelo Rio e nos fazia o agrado da visita. O frade era, de longa data, amigo de nossas famílias, das quais fizera batizados, primeiras-comunhões e uniões. Recebemos o amigo, confessor e conselheiro com muita alegria. Frei Prudêncio oficiara nosso casamento, agora, brincava com nossa filha Bia em seu colo.

Em julho de 1956, aproveitei a oportunidade de minhas primeiras férias no emprego que obtivera, logo ao chegar ao Rio, recomendado que fora à empresa fornecedorado sistema telefônico de Santarém e voltei ansioso por garantir que Nancy e eu viveríamos juntos para sempre.

A caçula, embora a mãe morasse no canto da rua dos Artistas com a praça São Sebastião, desde criança fora criada pela irmã na casa do canto oposto, à beira-rio, o que provocou a dúvida: Nancy morava com Zilah e meu pai não sabia se deveria fazer o pedido ao marido desta, NinitoVeloso. Meus pais visitaram Dona Marcolina e, em meu nome, pediram formalmente a mão de Nancy em casamento. Tudo conforme a praxe que então se obedecia rigorosamente.

Proclamas dispensados, no dia vinte e cinco de julho de mil novecentos e cinqüenta e seis, na casa de meus pais, ali no meio da praça Rodrigues dos Santos, Doutor Cacela oficiou o casamento civil e Frei Prudêncio o religioso. A noiva, linda em seu vestido branco, foi trazida por Ninito ao som da valsa nupcial briosamente tocada ao piano por Dona Beatriz, minha mãe. Eu ardia em febre de quarenta graus e mal me punha em pé.

Dias depois embarcávamos para oRio. Fomos abençoados com a série das quatro Therezas, como ficaram conhecidas entre os contemporâneos de Jacarepaguá, T. Beatriz, T. Cristina, T. Valéria e T.Lucia, depois as gêmeas, Karla e Andréa, finalmente, Sebastião Junior. JR já estava com pouco mais de dois anos e Nancy e eu conversávamos na sacada de nosso apartamento na Gávea quando observamos uma senhora descendo a Marquês de São Vicente com seu recém-nascido num carrinho de bebê. Nancy calou-se e acompanhoua mulher e a criança com o olhar até que a curva da rua os escondesse. Por algum tempo ficou pensativa e, quando a toquei no ombro, virou-se para mim e disse, com um misto de aceitação e saudade na voz: “ano que vem não teremos mais bebêem casa...”. Esta frase, naquele contexto, mostra perfeitamente a missão dessagenerosa mulher. Nancy veio ao mundo para ser esposa dedicada, mãe amorosa, avócarinhosa, bisavó cheia de ternura. É isto que a faz ser o que é. Nancy cuida. Nancy ama. Nancy acarinha. Sua missão é amar. Mas Nancy é firme. É firme no caráter, firme na fé, firme nas convicções, firme na ética e na moral, firme em perseguir o que quer. Essas virtudes se aliam às muitas outras que possui e fazem dela pessoa excepcional. Ela é responsável por estarmos juntos e bem, ela quis isto e não permitiu que os tortuosos caminhos da vida nos afastassem desse objetivo. Porque ela mesma me declarou que sua ambição de vida era ficar bem velhinha junto comigo para cuidar de mim, para que cuidássemos um do outro, para que nos amássemos eternamente.

União de cinqüenta anos, bodas de ouro, é extraordinária benção divina. Muito poucos são os privilegiados por esse tesouro de bênçãos juntas e interligadas.Primeiro é o dom da vida, longa o suficiente para atingir esse estágio. Outra benção é o amor que une e envolve o casal de modo irreversível. Depois, os dons da tolerância, da apreciação da diferença, da aceitação do contraditório. O dom do perdão. O dom da capacidade de influenciar para retificar e aperfeiçoar a vida do companheiro. Finalmente, a benção de que sejam dois os abençoados. Além disto, há a benção do destino, da sorte, dos acontecimentos fortuitos, aleatórios, imponderáveis e imprevisíveis que nos forçam os passos.

Quando Nancy e eu decidimos que não pertencíamos aonde morávamos, que deveríamos retornar a Santarém, sentimento atávico nos guiou para o lugar ao qual pertencemos. É aqui na Terra da Felicidade, onde podemos ser quem somos, que retomamos o namoro antigo, refizemos o casamento de nossos destinos e sublimamos o amor original. Éaqui que nos amamos.

E se isto parece ao amado leitor alguma deslavada e pública declaração de amor,esteja certo de que é isto mesmo, a mais desastrada e incompetente, porém a mais profunda, sincera e fervorosa declaração de amor.

Em 25 de julho de 2006, Nancy e Sebastião completaram cinqüenta anos de casados.

* Artigo publicado em O Estado do Tapajós, jornal diário de Santarém, Pará, onde Autor (75) escreve sobre temas de interesse geral, principalmente amazônicos.

21 de janeiro de 2007

Reflexões sobre versos de Shelley

Sebastião Imbiriba*

Há décadas o Recife acompanha com competência e bom gosto o movimento universal de restauração de centros urbanos. Pontes, avenidas e prédios readquirem novas feições, certamente mais gloriosas do que as originais porque apoiadas nas artes de iluminação e paisagismo. Estacionamos na garagem do readequado Paço da Alfândega, que viemos visitar, mas em vez de atravessar a rua pela passarela aérea, descemos aonde se encontra bem provida livraria.

A visita ao Paço fica para depois. A Cultura é uma das melhores livraria do Brasil e ali passamos bom tempo folheando livros. Percorro estantes, olho os títulos, os autores. Um livro em particular me chama a atenção: The Complete Poetical Works of Percy Bysshe Shelley.

Shelley, amigo de Keats, Byron, Tennyson e Yeats, nasceu em 1792 na Inglaterra e estudou em Eton, Oxford, de onde foi afastado por suas idéias (“If the knowledge of a God is the most necessary, why is it not the most evident and the clearest?”). Depois de expulso e deserdado pelo pai, fugiu para a Escócia com Harriet, de dezesseis anos, com quem teve dois filhos e que o abandonou por lhe ter proposto casamento aberto com ex-colega de faculdade. A obra poética de Shelley, algumas vezes líricas, o mais das vezes cética, possui qualidade literária e filosófica.

Abri o livro ao acaso e procurei o título mais próximo. Encontrei o poema Queen Mab, publicado em 1813. Os seguintes versos me prenderam a atenção:


I was an infant when my mother went
To see an atheist burned. She took me there:
The dark-robed priests were met around the pile;
The multitude was gazing silently;
And as the culprit passed with dauntless mien,
Tempered disdain in his unaltering eye,
Mixed with a quiet smile, shone calmly forth:
The thirsty fire crept round his manly limbs;
His resolute eyes were scorched to blindness soon;
His death-pang rent my heart! the insensate mob
Uttered a cry of triumph, and I wept.
"Weep not, child!" cried my mother, "for that man
Has said, There is no God."'

Não resisto a vertê-los:


Eu era criança quando minha mãe foi
Ver queimar um ateu. Levou-me lá.
Sacerdotes de escuros mantos cercavam a pilha;
A multidão fitava em silencio;
Enquanto o culpado passava com destemido ar,
Moderado desdém em seu olhar fixo,
Misturado a quieto sorriso, focava adiante calmamente:
O sedento fogo envolveu seus másculos membros;
Logo, os resolutos olhos foram crestados à cegueira;
Sua dor-morte ocupou meu coração! A insensata turba
Proferiu triunfante grito, e eu chorei.
"Não chora, criança!” soluçou minha mãe, "porque este homem
Falou: não existe Deus ““.

Reflito sobre época, contexto, significados e implicações destes versos, o que me conduz ao conceito de Liberdade, a de crença, a de expressão. O radicalismo das crenças, o poder, a imposição autoritária das normas de conduta, a crendice popular, a aceitação e entusiasmo da turba, tudo isto reafirma a convicção de que não pode haver limites à liberdade de pensar e dizer.

A contrário do fazer, necessariamente relativo à liberdade dos demais membros da sociedade, qualquer restrição à crença e ao dizer conduz a controle crescente, à submissão, ao autoritarismo, à insuportável tirania.

· Articulista amazônico.
· Artigo a ser publicado em 25/01/07 em O Estado do Tapajós, jornal diário de Santarém, Pará, onde Autor (75) escreve sobre temas de interesse geral, principalmente amazônicos.

18 de janeiro de 2007

Visita encantada á Oficina Brennand

Sebastiao Imbiriba*

Como disse, em artigo anterior, estamos no Recife visitando filha, genro e netos. Embarcaríamos de volta a Santarém na véspera de Dia de Reis, mas quando a data foi se aproximando o coração apertou, o medo das saudades afluiu. Sentimentos conflitantes, medo de deixar os daqui, saudades dos de lá começando a machucar. Desejamos, Nancy e eu estar em vários lugares ao mesmo tempo, junto de nossos netos, nossa alegria, nossa continuidade. Adiamos para início de fevereiro. Mais um mês pernambucano.

Aproveitamos para outra encantada visita, desta vez a uma fábrica, ao mesmo tempo museu, exatamente no lugar visitado por mim há mais de cinqüenta anos, onde existira grande fábrica de tijolos, telhas e porcelana fina. Onde havia a Cerâmica São João da Várzea, fundada em 1917 por Ricardo Brennand, cujas atividades encerraram na década de 1950, Francisco Brennand, filho do antigo proprietário, reabriu o estabelecimento, em 1971, com o nome de Oficina Brennand.

Francisco começara sua vida como desenhista, pintor, escultor e ceramista sob orientação de importantes artistas contratados por seu pai para alimentar de talento e arte as linhas de produção fabris. Com apoio do pai enveredou pelas artes, mas não perdeu a herança industrial. A Oficina Brennand é uma indústria que produz arte e isto se percebe no jeito peculiar deste museu ímpar. É aqui que o artista fabrica seus sonhos.
A Oficina produz pisos e revestimentos de altíssima qualidade requisitada por arquitetos famosos para enriquecer seus projetos. Produz, também, objetos utilitários e decorativos, jarras, copos, cinzeiros, pés de mesa, uma infinidade de coisas, cada uma delas carregadas do espírito criador, inventivo, deste grande artista que é Francisco Brennand. Mas é no museu que o talento do escultor, do desenhista se revela em toda plenitude.

Ao nos aproximarmos, somos saudados por quatro figuras de saltimbancos, esculpidas pelo artista e plantadas junto ao portão de entrada. Nossa visita começa pelo Templo Central, que guarda em sua cúpula o Ovo Primordial, símbolo da imortalidade.
Por trás do Templo, encontramos primoroso jardim projetado pelo paisagista Burle Max, enriquecido com esculturas de Brennand, a Praça Burle Max. Penetramos o enorme Salão de Esculturas, com esculturas e painéis do artista em exposição permanente e onde também encontramos o Anfiteatro com piso em forma de mandala.

Vamos agora à Academia, prédio moderno onde encontramos galeria com mais de trezentos desenhos e pinturas do artista. Ao lado, encontramos o Auditório Heitor Villa Lobos, com cento e trinta lugares, cujo lobby serve de sala de exposição dos objetos de arte à venda. Passamos pelo Estádio, espaço onde se realizam eventos, e vamos até o Templo do Sacrifício que, segundo o artista, se destina ao resgate de culturas assassinadas. Os dois templos possuem grandiosidade peculiar impressa pelo artista.

Chegamos, por fim, à Loja-café, onde compramos algumas lembranças e fazemos um lanche de comidas regionais, enquanto recordamos e comentamos as mais de duas mil peças - sem contar pisos e revestimentos variados - murais, painéis, esculturas, desenhos, pinturas de alto valor artístico que acabáramos de admirar.

O que mais me admira é a capacidade deste fantástico ceramista, escultor, desenhista, pintor, tapeceiro, ilustrador, gravador e poeta de unir senso fabril com extraordinário talento artístico. Esta foi realmente uma visita encantada pelo reino da imaginação de Francisco Brennand.

* Artigo publicado em O Estado do Tapajós, jornal diário de Santarém, Pará, onde Autor (75) escreve sobre temas de interesse geral, principalmente amazônicos.

Visita encantada ao Instituto Ricardo Brennand

Sebastiao Imbiriba*

Museus me fascinam. Desde criança, quando meus pais me conduziram ao Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro - onde as cinco toneladas negras do meteorito Bendengó e as múmias egípcias em seus sarcófagos coloridos me marcaram indelevelmente a lembrança - museus fazem parte de minha vida. Onde quer que vá, é o que procuro por primeiro. Tenho a felicidade de conhecer vários, no Brasil, América do Norte, na Europa. Alguns me impressionaram vivamente.

Estamos, minha mulher e eu, no Recife, aonde viemos para as festividades natalinas com a filha, genro e netos, de quem há algum tempo sofríamos saudades. Foi num dos passeios com a família que tive a felicidade de ser agradavelmente surpreendido pelo acervo, localização, paisagismo e arquitetura de museu do qual não tinha notícia.

Quando jovem, em mil novecentos e cinqüenta, se não me engano, acompanhei meu pai em visita à cerâmica dos Brennand, onde ele encomendara baixela especialmente decorada com seu monograma. Percorremos a fábrica, ele conversando com o proprietário, eu maravilhado com o processo de transformação do branco caulim em delicada porcelana. Agora, mais de meio século depois, encontrava-me na mesma região do Recife, na Várzea, ao lado de uma poderosa fábrica de vidros do mesmo grupo econômico, onde elegantíssima alameda de jovens palmeiras imperiais nos conduzia ao portal do Instituto Ricardo Brennand.

O jovem Ricardo era ainda rapazola quando o pai o presenteou com um canivete. A este, o latente colecionador acrescentou outros e, com o passar do tempo, o hábito se transformou em marca de sua personalidade. A coleção de canivetes expandiu-se com armas e armaduras, humanas, eqüinas e até canina, provenientes das Américas, África, Europa e Ásia, abrigados num dos prédios do Instituto, o Castelo São João, construído, como todo o conjunto arquitetônico, no estilo Tudor.

Gosto e cultura do colecionador evoluíram, o interesse por artefatos bélicos manteve-se, aperfeiçoou-se, revelando extremo bom gosto, mas o escopo da coleção cresceu, permitindo a entrada de maravilhosos Gobelins do século XVIII reproduzindo cenas pernambucanas, retratadas um século antes, durante o governo de Nassau, pelo holandês Albert Eckhout. Há também tapeçarias de Flandres e d'Aubusson com cenas guerreiras e bíblicas. Além destas peças, inúmeras pinturas a óleo, estatuária, móveis, outros artefatos e poteria de formidável valor artístico.

Uma das salas da pinacoteca contém quarenta e duas reproduções em cera de figuras humanas, na escala natural, dispostas em cena de tribunal, na qual cerca de doze juizes, constrangidos pela presença do jovem rei Luiz XIV, acompanhado do mosqueteiro D'Artagnan, condenam à prisão perpétua o ex-tesoureiro real Nicolas Fouquet. Luiz XIV recém assumira o poder de fato em 1661, embora herdasse o trono em 1643 e desejava vingar-se do amante de sua mãe, Ana d'Áustria, o recém-falecido primeiro ministro, cardeal italiano Giulio Mazarino. O ódio do rei se voltara contra o protegido de Mazarino e é este ambiente psicológico que a cena retrata com grande força dramática.

A principal sala da pinacoteca apresenta “Frans Post e o Brasil Holandês na Coleção do Instituto Ricardo Brennand”, aberta ao público em abril de 2003 e ainda em exposição, marcando as comemorações dos 400 anos de Johann Moritz von Nassau-Siegen. Este é um conjunto de obras do século XVII adquiridas pelo colecionador ao longo de vários anos, composto por tapeçarias, documentos, livros, objetos e moedas referentes ao Brasil holandês, incluindo 15 telas do pintor Frans Post, membro do grupo de artistas, escritores e cientistas trazidos a Pernambuco pelo conde João Maurício. A mostra contém ainda documentos, manuscritos e auto-retratos de Maurício de Nassau.

Todo esse acervo, o ambiente que o abriga e o espírito que o preside ajudam a iluminar a vida cultural de Pernambuco e do Brasil. Real encantamento.

* Artigo publicado em O Estado do Tapajós, jornal diário de Santarém, Pará, onde Autor (75) escreve sobre temas de interesse geral, principalmente amazônicos.