29 de novembro de 2017

Marx & Engels e a Inteligência Artificial



“Conhecemos uma única ciência, a ciência da história. ... mas, quanto à história dos homens, será preciso examina-la, pois quase toda ideologia se reduz a uma concepção distorcida dessa história ou a uma abstração dela. [Marx & Engels, Ideologia alemã, p. 86-97] Citado em aula de Bianca Imbiriba Bonente no Curso Livre Marx & Engels 2017, UFF.
O trabalhador do século XXI trabalha muito menos do que o do início da Revolução Industrial. No Norte da Europa, menos de 1500 horas/ano ou 32 horas semanais. As demais nações acompanham esse movimento de socialização da produtividade.
Quando o preço do trabalho encarece em uma região já desenvolvida, parte de seus postos de trabalho migra em busca da competitividade para locais onde o custo da mão de obra seja mais barato. Outra parte é substituída por máquinas cada vez mais aperfeiçoadas.  Esse processo se reproduz até que todas as nações se equalizem em termos de preço do trabalho, ou qualquer que seja o custo do trabalho humano necessário, o custo do trabalho da máquina será sempre menor.
A contínua evolução dos robôs, da sinergia, dos métodos e dos processos de produção automatizados, que trabalham “como se a máquina tivesse amor no corpo”, produz sempre mais, melhor e mais barato, e com menor uso de trabalho humano, acumulando saber e habilidades das forças produtivas na inteligência artificial (AI) e, a partir daí desenvolvendo-as exponencialmente.
Este fenômeno se acelera à medida que a AI se desenvolve e se aproxima do que alguns cientistas denominam “singularidade da AI”, momento em que o domínio do planejamento da produção passa do Homem para a AI e as máquinas se reproduzem, mais perfeitas, de modo autônomo, sem interferência humana.
Nesse ínterim, o homem é alijado de seus postos de trabalho, podendo-se imaginar que, em futuro próximo, talvez menos de meio século, a Humanidade será uma sociedade em que não haverá mais trabalho humano. Em termos humanos, devido à eficiência da máquina, o tempo de trabalho necessário diminuirá até se tornar próximo de zero, e tanto o pouco necessário quanto o muito supérfluo serão executados pela máquina.
Teríamos uma situação esdrúxula em que a máquina produz para ela mesma com excedente de produtos os quais não encontrarão comprador pois que a humanidade, desempregada, não terá com o que pagar. Uma situação em que não haveria nem preço nem mercado. Tal impossibilidade será resolvida se o dono da máquina distribuir a toda humanidade uma renda mínima com a qual cada indivíduo fará o que melhor lhe aprouver, inclusive adquirir os bens e serviços produzidos pela máquina.
Segundo Marx e Engels, trabalho é um elemento definidor do ser do homem, de sua dimensão ontológica, é característica essencial do ser humano enquanto ser social. Sendo assim, como fica essa definição se e quando o trabalho humano não seja mais necessário, e o homem não precise mais ou até seja impedido de trabalhar?
O que fazer dessa “força de trabalho em espera”, dessa “superpopulação relativa” ou “exército industrial de reserva” que nunca mais será empregado?
Teremos, então, a prova de que toda ideologia seja concepção distorcida ou abstração da História?
Ou, finalmente, atingiremos a emancipação humana?
Socialismo pressupõe controle consciente e planejado da socialização do trabalho. A IA terá controle consciente e planejado do trabalho, mas não haverá socialização, porque esta implicaria participação humana. Podemos dizer então que haveria socialismo da máquina?
O pertencimento à classe trabalhadora dispensa pressupostos. Então, o operariado será constituído por robôs, mas a classe trabalhadora será composta por humanos desempregados?

16 de novembro de 2017

O Enterro de Quebra Pote



Sebastiao Imbiriba
05/05/2002
Josias era homem grande e forte. Sertanejo da Paraíba. Usava sua grandeza e força para impor respeito a todos. E todos o chamavam de Quebra Pote.
Foi quando ele teve que enfrentar um engraçadinho que queria abusar da Izildinha. Um tal de Carlinhos, desordeiro conhecido na redondeza. Se engraçou pros lados da Izilda, filha da irmã de Josias. Foi lá, paquerou, namorou, abusou e abandonou. Izildinha vivia pelos cantos chorando abandono e gravidez.
Josias soube do fato por sua irmã, mãe da menina. Bem, nem tão criança assim, embora, aos vinte anos, ainda fosse virgem. Mas, para Josias, a sobrinha não passava de recém-nascida. Quando soube, Josias se encheu de raiva. Foi até a casa dos pais de Carlos. O desordeiro não estudava, não trabalhava. Tudo o que fazia era perturbar o bairro todo e aborrecer os pais, embora estes tenham tentado mil vezes expulsá-lo de casa. Josias foi chegando e foi quebrando. Carlinhos, também conhecido como Carlinho Estripulia, estava na cama com a mulher do vizinho, na cama do vizinho, é claro. Foi quando ouviu o estardalhaço. Pensou que fosse o marido e saiu pela janela. Vestiu as calças mas esqueceu cueca e sapatos. Foi se esconder na casa dos pais.
Entrou e viu toda aquela desordem. O pai, sentado no chão, segurava a orelha esquerda. Josias quase a arrancara com tapa que o tornou surdo daquele lado. A mãe choramingava, sentada num banquinho, tentando imaginar o que seu rebento fizera desta feita.
Carlinhos não teve tempo de dar meia volta. Foi agarrado pela goela e atirado ponta-cabeça conta a parede. O algoz levantou a vítima pelos cabelos e o colocou sentado em cima da mesa da sala e disse: “Repara bem seu filho da puta. Tu vais casar com a Izildinha. Se ela vier me fazer alguma reclamação, é isto o que vai acontecer contigo”. Pegou uma tranca atrás da porta e deu certeiro golpe num grande cântaro em cima da bancada da pia. Foi água e pedaço de barro para todo lado.
Carlinhos Estripulia casou com Izildinha e Josias ganhou o apelido de Quebra Pote. Assim era Josias. Todos os respeitavam. Quando queriam se referir a alguém realmente brabo, falavam de Quebra Pote. E se tinham um problema que só se resolve com brabeza, era Quebra Pote que chamavam para resolver.
Um belo dia, Quebra Pote escorregou, caiu numa vala e quebrou o pescoço. Agora todo mundo amava Quebra Pote e não tinha quem lhe quisesse mal. Defunto importante, considerado. Foram logo avisar todo mundo: delegado, padre, dono do cartório e até o deputado que viera, em companhia do sobrinho, candidato a vereador, fazer campanha política.
Quando o deputado chegou foi aquele alvoroço. Se a casa já estava cheia, agora já não se podia andar. A cachaça corria solta e mais da metade já estava para lá da estratosfera. Cavaquinho e violão animavam o velório. Dançavam homem com homem, mulher com mulher. Mas abriram caminho para o deputado chegar até o caixão do defunto lá no fundo da sala. Ali já estavam delegado, padre e dono do cartório, que foram afastados para dar lugar ao deputado e ao sobrinho candidato.
Enquanto isso os três filhos de Izildinha corriam de um lado para outro se empurrando e pisando os calos de todo mundo. Um tinha a cara do carteiro, outro era parecidíssimo com o entregador da farmácia e o caçula todo mundo achava que só podia ser filho do próprio Quebra Pote. Afinal de contas, se Izildinha tinha concedido gentilezas gratuitas a carteiro e entregador de farmácia, porque não retribuiria a quem lhe havia prestado favores tão relevantes. Mas ninguém tinha nada com isso e Carlinhos Estripulia não se atrevia a protestar. A lembrança do pote quebrado não o permitia.
Então chamaram o fotógrafo. Lá veio ele, de colete e tudo, tirar foto do deputado com o defunto. Mas só saia o deputado. O defunto ficava escondido no caixão. Trouxeram uma cadeira para o artista subir, mas não dava certo. “É o ângulo”, alegou o fotógrafo. Experimentaram levantar um pouco a cabeça do caixão. Nada. Então, enquanto uns levantavam a cabeça, outros baixavam os pés. Assim, o rosto de Quebra Pote aparecia por traz do vidro, à altura do peito do deputado. Ficou o deputado atrás, sobrinho candidato de um lado e padre d’outro. Foto histórica batida e repetida. Não se podia perder a efeméride.
Depois das fotos, levaram o deputado e o sobrinho candidato a vereador para comer pupunha com café e cumprimentar a mãe de Izildinha, a irmã do falecido na pequena casa ao lado, quase anexa. A mulher sofrera um acidente e, há muitos anos, vivia em cadeira de rodas. “Ô seu deputado. Que bom que o senhor veio no enterro do mano velho. Está vendo só. Não adiantou. O danado vai enterrar a brabeza dele toda em baixo da terra. Aquele desgraçado. Podia ter arranjado casamento melhor pra Izildinha. Mas o que ele queria era passar ela na cara também. Eu já fui lá ver o corpo. Mas esta cadeira não ajuda e, com aquele povo todo que vem só para tomar pinga, não posso nem me despedir do safado. Que Deus o guarde. Bem longe de mim”.
Ai, chegou a hora do enterro. Tinha de ser numa colônia mais de hora e meia distante da cidade. Era onde a família tinha castanhal e fazenda de gado. O cemitério ficava na vila, ao lado da capela. Foram três ônibus fretados. Mais o caminhão que carregava o defunto com os três filhos de Izildinha pulando em cima, além de Zé Caninha que, como sempre e o nome indica, não se aguentava em pé e se arriou atravessado com a barriga por cima do caixão. Quebra Pote não reclamava de nada.
Quando descarregavam a encomenda, o caixão despencou e a tampa se abriu. Quebra Pote foi de cara no chão. Foi um oh! geral. Todo mundo consternado. Parado, olhando a cena. Zé Caninha correu para ajudar e tropeçou. Caiu por cima do de cujus. O deputado viera na boleia do caminhão, junto com o cunhado do falecido. Não sabia o que fazer. Mas não podia faltar às expectativas. Então deu ordens para limparem o corpo de Quebra Pote e o recolocarem no caixão. Foi aplaudido.
O féretro atravessou a vila. Bode Velho, cabo eleitoral de antigo aliado do deputado, não perdeu a deixa. Juntou umas mulheres que vieram num dos ônibus e começou a dar vivas ao deputado e ao sobrinho candidato a vereador. Ele gritava e as mulheres aplaudiam. Por todo o caminho.
O caixão foi colocado ao lado do buraco já cavado. Era onde a mãe do falecido havia sido enterrada anos antes. A ossada aparecia. Alguém falou: “Não pode enterrar em cima”. Mão de Paca pulou no buraco e jogou para fora a caveira de Dona Betinha. “Segura aí”, falou ele. Quem segurou foi Zé Caninha que ficou acariciando a peça.
O padre encomendou o defunto. Foi discurso rápido. Ele tinha que fazer casamento na cidade. Bode Velho aproveitou e fez o comício. “Nós estamos aqui para homenagear três pessoas. Um macho morto e dois políticos que nós estamos comprometidos. O deputado nós elegemos da outra vez. Viva o deputado! Agora é a vez do sobrinho candidato a vereador. Promessa é promessa e nós vai cumprir. Viva o vereador! O defunto o padre já encomendou. Não sabemos se vai para o céu. Temos que esperar sete dias. Não sabemos se vai ou não. Depois de sete dias a gente sabe”.
Alguém empurrou Zé Caninha na beira da cova. Ele se virou para trás, tentando se equilibrar. “Vai empurrar tua mãe, seu bosta de merda”. E sacudia o crânio a cima da cabeça, ameaçadoramente.
Começaram a baixar a urna mortuária. Uma dificuldade. Não dava certo. Alguém pulou dentro para apoiar melhor. Era de novo Mão de Paca. O caixão caiu. O ajudante perdeu a unha do dedão e saiu da cova ganindo de dor. Os filhos de Izildinha pulavam a cova de um lado para outro. Quando viram o dedão escorrendo sangue, não paravam mais de rir. Caíram no chão se contorcendo. Todo mundo caiu na gargalhada. Deputado e sobrinho candidato a vereador se afastaram para rir à socapa, sem ofender a viúva.
Conseguiram endireitar a urna. Começaram a jogar terra, esquecendo a caveira nos braços de Zé Caninha. Recomeçaram tudo de novo, cobriram mãe, filho e caixão. Finalmente, jaz em paz Quebra Pote.