26 de junho de 2020

Arte Tapajó

Exposição de Arte Brasileira do Tapajós

Sebastião Imbiriba

Artigo publicados em O Estado do Tapajós de 10 a 24/11/2005 após viagem de três meses pela Europa onde o Autor estabelecera os contatos aqui mencionados.

O Projeto

A Exposição de Arte Brasileira do Tapajós é um projeto de longo alcance objetivando o desenvolvimento de Santarém e todo o Oeste do Pará através de um movimento estético identificador de nossa região, de nossa cultura, de nosso povo, tendo como consequência a transformação desta região em destino turístico-cultural capaz de absorver grandes contingentes de mão de obra e criar importantes negócios promotores do desenvolvimento econômico e social.

A Exposição de Arte Brasileira do Tapajós é uma coleção de obras de arte, tanto trabalhos atuais baseados em peças arqueológicas quanto as próprias peças originais, a ser apresentada ao público europeu a partir de novembro de 2006 em Copenhague, Dinamarca e, em 2007 ao público brasileiro. A nova estética a ser apresentada consiste na aplicação de grafismos da cerâmica Tapajó pré-colombiana em obras de artes atuais como forma de as identificar como “Arte Santarém” ou “Arte Tapajó”. A exposição será composta de:

1 - Vasos arqueológicos da coleção do Museu João Fona de Santarém, do Museu Emílio Goeldi e da Universidade de São Paulo, se possível, representativos da cultura Tapajó;

2 - Réplicas atuais de cerâmica original;

3 - Peças de arte atuais, figurativas representando velhas lendas amazônicas produzidas em diversos meios como colagem de materiais da floresta em óleo sobre tela, joalheria, talha em madeira e outras formas de expressão artística, bem como, estilizações e alegorias dos motivos da cerâmica Tapajó.

Os objetivos do projeto são:

1 - Promover a criação e divulgar uma estética identificadora da arte produzida na região de influência dos antigos tapajó, os rios Tapajós, Trombetas e Baixo Amazonas, e seus afluentes;

2 - Aperfeiçoar a cultura artística, a estética e a técnica dos artistas e artesãos dessa região;

3 - Melhorar a renda dos artistas e artesãos envolvidos no projeto através da divulgação e apoio às vendas dos objetos de arte produzidos;

4 - Elevar os indicadores sociais e econômicos das famílias dos artistas e, consequentemente de toda a sociedade.

O escopo do projeto abrange:

1 - Arregimentação, motivação e treinamento dos artistas (início de 2006);

2 - Concurso de Seleção das obras a serem incluídas na exposição (junho de 2006);

3 - Exposição (novembro 2006) na Dinamarca, escolhida pela grande simpatia que este país tem pelo Brasil e pelos contatos estabelecidos pelo idealizador do projeto com Sr. Finn Andersen, Gerente Geral do Instituto Dinamarquês de Cultura e Sra. Libusé Muller, proprietária da Galleri SHAMBALA de Copenhague;

4 - Exposição itinerante por universidades e centros culturais brasileiros (no correr de 2007);

5 - Palestras concomitantes com as exposições;

6 - Relações públicas e divulgação através de entrevistas coletivas, notas à imprensa, publicidade na mídia eletrônica e impressa;

7 - Curatela e seguro para os objetos arqueológicos cedidos por museus.

 

Justificativa cultural

A justificativa histórica, arqueológica e artística tem origens em vários fatos e circunstâncias desde os primórdios de nossa história e da pré-história. Em carta de 1637, durante sua expedição pelo rio Amazonas, num exercício de exagero imaginativo, o explorador português Bento da Costa afirmava que “se do ar deixassem cair uma agulha, há de dar em cabeça de índio e não no solo”. Tentava ele indicar a enormidade da população indígena que àquela época povoava as margens do grande rio de que fora o primeiro explorador lusitano a navegar até seus confins. Estima-se hoje que a população daquele tempo possa ter atingido mais de sete milhões de indivíduos, aproximadamente a atual população conjunta dos Estados do Amazonas e Pará.

Exageros à parte, pesquisas arqueológicas realizadas a partir da década de 1980 indicam ter havido dois povos amazônicos pré-colombianos mais avançados, tecnológica e artisticamente, do que seus contemporâneos e mesmo que seus descendentes da época do descobrimento. Estes povos foram os Marajoara e os Tapajó. Há vestígios comprovados, de ambos os povos, datados dos primeiros séculos da era cristã. Os marajoaras desapareceram, inexplicavelmente, por volta do ano 1300. Seus domínios, as ilhas do arquipélago do Marajó, foram posteriormente ocupados por gente de outra origem, os Aruaque.

Os Tapajó parecem ter chegado ao Baixo Amazonas já em seu melhor estágio cultural e, ao longo do tempo, perderam conhecimento e se moldaram em outras etnias, como Mundurucu, Wai-wai e Pauxi, alguns dos quais permanecem até nossos dias. É nesse estágio de regressão cultural que foram catequizados por missionários jesuítas comandados pelo padre Felipe Bettendorf.

A memória desses dois grandes povos foi quase totalmente apagada pela ação do tempo, da selva, do vandalismo do colonizador e do preconceito do catequista. Dos Marajoaras restaram potes de cerâmica utilitária magnificamente decorada. Do legado Tapajó herdamos utensílios de pedra polida e cerâmica produzida com finalidade principalmente estética, objetos de arte refinada, altamente elaborada.

A nação Tupaiu, Tapajó, tapajoara, tapajônica ou, ainda, santarena, como queiram, parece ter sido, se não um império no senso próprio do vocábulo, pelo menos, o domínio de um povo hegemônico central sobre etnias periféricas situadas até a mais de trezentos quilômetros de Santarém, estendendo-se acima e abaixo pelo Baixo Amazonas, Trombetas e Tapajós, como indicam os achados arqueológicos em sítios espalhados por toda essa região. Um relato da existência deste “império” foi feito em 1662 pelo português Maurício Heriarte ao descrever sua expedição ao Amazonas.

      Há notícias, certamente exageradas ao extremo, de movimentos bélicos de grandes proporções envolvendo muitas dezenas de milhares de guerreiros do povo Tapajó, o que, consideradas as dificuldades logísticas de seu estágio de civilização, seria uma impossibilidade, principalmente quando se movimentassem em expedições por grandes distâncias. No entanto, os Tapajó eram certamente os mais aguerridos dos povos da Amazônia, envenenavam suas flechas com curare e suas mulheres participavam das campanhas, talvez até como combatentes. É provável que os relatos das amazonas do rio Nhamundá não se referissem a nativas daquela região, mas a esposas e filhas de guerreiros Tapajó que ali os estivessem acompanhando. Daí, possivelmente, a origem da famosa lenda. Evidentemente, não há senão especulações.

Mas, se a arte da guerra pode ter sido marca da civilização tapajó, não há dúvida de que a da cerâmica tenha sido seu maior apanágio e é isto que veremos a seguir.

 

A Cerâmica Tapajó

Vaso de cariátides

Frederico Barata, um dos mais ilustres intelectuais de Santarém - jornalista, escritor, arqueólogo - desenvolveu trabalho de grande importância recolhendo peças de cerâmica Tapajó, descrevendo-as, analisando-as, coletando sua morfologia e seus grafismos, procedendo à análise estilística dessa arte ao mesmo tempo tão sofisticada e tão simples. É tal o valor de sua obra que, embora realizada de forma empírica e com poucos recursos, serve como fundamento bastante e necessário a todos os trabalhos acadêmicos, os de bacharelado assim como os de mestrado e doutorado, que se realizam sobre a arte do povo Tapajó. Frederico Barata esgotou a essência do assunto.


Os dois principais tipos de vasos, o de gargalo e o de cariátides[i] tinham aplicações diferentes. O primeiro, certamente, servia para depósito de líquidos ou cinzas, pois que todos os deste tipo encontrados intactos continham uma destas substâncias, enquanto que em nenhum dos de cariátides jamais foi encontrado vestígio de qualquer material. As cinzas seriam as dos mortos. Os líquidos seriam vinhos com algum teor alcoólico derivados do milho ou do arroz-bravo. Fala-se da possibilidade de que existissem bebidas alucinógenas, mas disto não parece haver comprovação entre o povo Tapajó.

A principal forma de expressão da arte Tapajó é a cerâmica, tanto na forma de vasos quanto de ídolos. Por seu estilo e técnica é cerâmica única na Amazônia. De pequenas dimensões, não ultrapassam os trinta centímetros quer na altura ou na largura. Os ídolos cerâmicos têm dimensões ainda menores.

O “vaso de cariátides” é um cálice raso montado sobre pedestal de menor diâmetro, em forma de carretel, tendo este, em sua parte mediana, três bustos de figuras femininas. O vaso é decorado com grafismos de tal precisão geométrica que os módulos gráficos percorrem toda a circunferência sem que haja alteração de suas proporções para que suas extremidades se encontrem perfeitamente. O cálice é decorado com figuras ântropo ou zoomorfos.

O “vaso de gargalo” é constituído de um bojo encimado por um estreito e curto gargalo, sua única abertura, sobreposto a um pedestal; a peça é decorada com cabeças e caudas de lagartos ou pássaros aplicados ao bojo, como se este fosse o corpo do animal.

O “vaso de carenagem” é mais simples e tem seu bojo circular dividido em gomos que sobressaem do diâmetro normal, formando as carenagens que lhe dão o nome e beleza.

Tanto os vasos quanto os ídolos eram profusamente adornados com motivos riscados ou em relevo. Algumas peças eram coloridas em vermelho, branco e preto. Há, também, exemplares que receberam maior número de figuras modeladas em forma de animais estilizados.

É muito provável que aqueles povos antigos produzissem outras formas de arte, cestaria, por exemplo, ou tecelagem de redes, cocares e outros adornos de penas, como o fazem, até hoje, os povos que os substituíram.

Os atuais artistas ceramistas do Marajó souberam incorporar a herança estética recebida dos antepassados e elaborar sobre ela, criando um estilo muito particular que lhes dá identidade e os torna imediatamente reconhecidos. O mesmo não ocorreu com os artistas de Santarém. Talvez por ser um centro de tráfego mercantil intenso e sofra toda sorte de influências das mais diferentes origens, sua arte tenha se tornado mais cosmopolita e, portanto, menos identificável. Esta falta de identidade, a ausência de um estilo particular, exclusivo de fazer arte, pode ser resolvida, exatamente por estarmos criando, desenvolvendo, formando e conformando uma cultura artística que seja nossa, a Arte Santarém ou a Nova Arte Tapajó, uma estética própria que a torne conhecida e reconhecida, facilmente identificável pelos apreciadores de arte em todo mundo.

O que os artistas que se engajam nesta busca por novos horizontes artísticos estão fazendo não é mera cópia da expressão artística dos antigos Tapajó. Temos aqui um movimento estético criativo que toma emprestado a herança arqueológica para construir em cima e além dela, inovando, inventando, acrescentando, contribuindo. Mesmo porque, não se restringe à cerâmica, aventura-se por todas as formas de expressão em que o espírito humano possa vislumbrar oportunidades de se exaltar e transcender. É claro que o começo surge nas artes plásticas e prosseguirá por algum tempo pelas artes manuais, mas nada impede que, no seu amadurecimento, possa percorrer os caminhos da literatura e da música.

Haverá um dia em que artesãos e artistas da região do Tapajós, tendo ultrapassado a fase da iniciação e, depois, a do engajamento, quem sabe do proselitismo, possam viver a plenitude da criação e traduzir em obras de livre inspiração o sentimento atávico, o espírito redivivo, eternamente moderno e vibrante, dos antigos Tapajó. Teremos então atingido a plenitude da criação de uma escola nossa, de uma estilística própria, nossa, exclusivamente nossa, a “Arte Tapajó”.

A Exposição de Arte Brasileira do Tapajós é um projeto que vai tomando corpo à medida em que contatos vão sendo estabelecidos e novas contribuições são agregadas, como é o caso dos entendimentos em reuniões que o idealizador do projeto manteve com o Gerente Geral do Instituto Dinamarquês de Cultura, Sr. Finn Andersen, a proprietária da Galleri SHAMBALA de Copenhague, Sra. Libusé Muller, o Secretário Especial de Estado da Promoção Social, Gerson Peres, com o Secretário Executivo de Cultura, Paulo Chaves Fernandes, com a Coordenadora de Comunicação e Extensão do Museu Paraense Emílio Goeldi, Luiza Hussak van Velthem, a Coordenadora do Ministério da Cultura e do IPHAN, Milene Lauande.

Logo após os primeiros contatos realizados na Dinamarca, o Idealizador comunicou por e-mail à Prefeita de Santarém, Maria do Carmo e ao Coordenador de Cultura Roberto Vinholte, por intermédio da professora Terezinha Amorim os entendimentos estabelecidos e solicitou o apoio indispensável da Prefeitura Municipal de Santarém.

A Exposição de Arte Brasileira do Tapajós é um projeto com extraordinário alcance estratégico, mas está apenas em seu início e muito há por fazer. Há necessidade da participação dos artistas e de todos os que, de uma forma ou outra estão envolvidos com o desenvolvimento cultural e social de nossa terra.

 

Comentário em 2020:

Logo após publicar esse artigo, o Autor foi submetido a duas cirurgias, em Belém do Grão Pará, o que o obrigou a mais de um ano de convalescência, sem dar continuidade ao projeto, cuja oportunidade se perdeu, embora suas premissas continuem válidas.



[i] Cariátide [Do gr. Karyátides, pelo lat. Caryatides.]  Substantivo feminino.
1.Figura humana, geralmente feminina, esculpida em fachadas de edifícios da Grécia antiga com a função de suporte de cornija ou arquitrave: “Na platibanda de friso ladrilhado, que duas cariátides de gesso amparavam e guarneciam, um par bisbilhoteiro de janelinhas em guilhotina” (Josué Montelo, A Décima Noite, p. 1). [Cf. telamão.] – Dicionário Aurélio

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10 de junho de 2020

Meia lágrima por um Pataxó

Sebastiao Imbiriba

Santarém do Tapajós, 14/08/1997

É madrugada na cidade fantasma. As longas e largas avenidas, desoladas e desertas, daquela Brasília cruel, abrigam apenas os pequenos redemoinhos de pó vermelho que a brisa morna levanta aqui e acolá.

Índio Pataxó.(Santa Cruz de Cabrália, Bahia) | FernandoPaoliello ...
Pataxó da Bahia

Vejo um índio de meia idade. Foi à capital em missão de sua tribo. Está hospedado em pequeno hotel, pagou adiantado e preencheu regularmente sua ficha. Mas, apenas por ser diferente, por estar vestido como índio que é, não lhe abrem a porta na madrugada. Humilhado, triste, desconsolado, desorientado, sai a perambular sem rumo, sem ter onde ficar, onde deitar seu cansaço, dormir um pouco, repousar para a luta do dia seguinte.

Vejo rapazes bonitos, saudáveis, bem vestidos, filhos de famílias de classe média, de altos funcionários, bem encaminhados, bem relacionados, cheios de expectativas perfeitamente realizáveis, alegres com a vida e contentes consigo mesmos. Vejo a exuberância da juventude em sua plena forma. É uma alegria vê-los assim tão joviais, expansivos, brincalhões a circular de automóvel pelas ruas desertas.

Que procuram eles? Uma menina desavisada a ser estuprada? Um travesti solitário a ser espancado? Um cachorro ou gato a ser atropelado? O que se passa na cabeça deles? Por certo, não pretendem ir à igreja a essa hora. Procuram diversão, algo que os tire da monotonia de ser feliz.

Então avistam o índio. Sem forças, deitara-se na calçada de um ponto de ônibus e dormira. Está ali, só, à mercê de qualquer intenção macabra. Pensamentos macabros é o que ocorre na cabeça dos belos jovens. O que fazer, perguntam-se. Silêncio. Não o despertem, deixem que ali fique até que estejam preparados. Partem quietamente em busca de combustível.

Voltam pouco depois. É apenas um mendigo, um candango pé rapado, talvez até um índio. Certamente dará bela fogueira. Será bonito ver a tocha humana levantar-se e perambular agitando os braços. Nem vai gritar. A primeira golfada de ar lhe queimará as cordas vocais. Maravilhoso espetáculo. Uma celebração.

Num instante, encharcam de álcool o infeliz. Antes que o índio desperte assustado, afastam-se dois passos e lhe jogam fósforos acesos. A chama azul soa surda em pequena explosão. O índio nem consegue levantar-se. Fica ali, no chão, agitando-se freneticamente. As labaredas logo tornam-se amarelas ao consumir a pele e queimar a gordura. O cheiro ativo de carne humana assada chega às narinas fidalgas. Os jovens gozam a sensação de poder absoluto, o poder de vida e morte. Gozam a visão da morte, o cheiro da morte. É o prazer supremo. Então, calmamente, entram no carro e partem. Vão em silêncio, felizes, realizados, comungando a expiação da vítima ao deus do horror, da estupidez e do absurdo.

As chamas queimam músculos e tendões. O índio não consegue mais se mover. Apenas agita-se nervosamente no sofrimento atroz. O corpo todo queimado. Os pulmões queimados. Os olhos, as narinas, o rosto, tudo queimado. De nada adianta o socorro. O sofrimento continua durante a longa agonia que o corpo rijo e forte estende por mais tempo.

A sociedade estremece. A TV notícia, o jornal comenta, a revista analisa, o político discursa. Um diz uma coisa, outro diz outra. É mais um fato macabro a ser comentado em nosso cotidiano. Nada que tenha consequências. Nada que seja consistente.

Adeus Pataxó anônimo, celebridade na agonia. A sociedade faz o que pode para limpar a consciência e, aliviada, chora por ti meia lágrima.