2 de novembro de 2009

O Estado e o Cidadão

Congresso Nacional está em vias de concluir a lei eleitoral que regerá as eleições de gerais de 2010. Embora não se trate de reforma política – e precisamos de uma que seja moralizadora e democratizante - reaviva nossas reflexões a respeito do que poderia ser um bom e realista sistema de representação política no Brasil, tema sobre o qual publiquei uma série de artigos em 2004, e o que se poderia esperar do Congresso nesta hora. A imaginação, o conhecimento e as lembranças passeiam por hipóteses da pretendida reforma política. Tais reflexões conduzem ao presente discurso em que se indaga se as instituições, criadas para promover o bem comum, de fato o fazem com equilíbrio entre o interesse coletivo, representado pelo Estado, e os direitos fundamentais do individuo, que o Estado deve proteger.
Vejamos como atingimos o estado liberal moderno. Sem ir até a distante discussão de Aristóteles sobre os diversos tipos de estado e formas de governo, poderíamos começar na Idade Média com o enunciado de que o poder emana do povo, do qual deriva o preceito de que o poder do soberano deve ser legitimado pela aceitação dos súditos ou, mais propriamente, por sua eleição por eles. O pacto social pelo qual os súditos se submetem à soberania do Estado, em troca da garantia de seus direitos fundamentais, é conseqüência do conceito da autonomia do poder terreno, em relação ao divino, criando-se recíprocos deveres em prol do bem coletivo. Na Summa Theológica, São Tomás de Aquino expressa a idéia de que a Lei se legitima pela Razão. Com isto, a instituição do Estado se consagra como legítima, não apenas pela aprovação do povo, mas pela razoabilidade das leis.
Leis prenhes e plenas de Razão. Isto pode parecer tão quimérico quando a República de Platão ou a Utopia de Thomas More. Maquiavel, o magnífico observador da alma e das instituições humanas, retrata com crua objetividade a realidade das práticas, as de então tanto quanto as de agora, ao constatar que, na prática, as razões de estado possuem motivação própria independente quer da religião, quer da moral e, mais ainda, dos interesses dos povos. Tal conceito dá licença à realpolitik, primeiro passo para aproximação e convivência pacífica entre contrários, tanto quanto, a todas as barbaridades cometidas contra a humanidade ao longo da história em nome das “razões de Estado”.
Em raras ocasiões o Estado representa o real interesse do povo. Pelo contrário, tem sido instrumento dos detentores atuais do poder, da pequena minoria dominante, o que é tão mais verdadeiro quão mais absoluto seja o poder. As coisas começaram a mudar um pouco quando a força econômica da burguesia mercantilista atingiu massa critica suficiente, na segunda metade do século XVIII, e a burguesia pode exigir participação no controle do poder, igualdade de tratamento perante a Lei, respeito às liberdades individuais e aos direitos fundamentais, inclusive o de propriedade, iniciando movimento democratizante que, pouco a pouco, conduziu as democracias modernas do século XXI.
A reação do monarca absolutista conduziu à Revolução Americana e, em seguida, à Revolução Francesa. As treze ex-colônias que formaram os Estados Unidos da América constituíram o primeiro estado formatado na concepção de Montesquieu da divisão de poderes entre executivo, legislativo e judiciário, formando o primeiro estado liberal - liberal não apenas no sentido econômico, mas principalmente no político - cuja principal missão seria o respeito às liberdades individuais através de ordem jurídica adequada ao livre embate dos interesses sociais e econômicos. Por incrível que pareça, tais conceitos foram criados com a participação de escravocratas, entre os quais sobressai a figura de Benjamim Franklin. A Common Law, que permite aos tribunais estabelecer precedentes, sem necessidade de leis prévias, concede dinamismo ao sistema. Tal esquema criou e permitiu grande pluralidade de instituições tais como partidos e associações políticas, sindicatos e grupos de pressão social dos quais Martin Luther King e Ralph Nader, no século XX se tornaram expoentes. É a liberdade de ação e expressão dessas entidades representativas das minorias, claro, dentro dos limites da paz social e dos direitos das demais, que caracteriza o Estado de Direito moderno, porque Democracia é o regime de poder da maioria exercido com total respeito aos direitos das minorias e dos indivíduos.
O século XX foi cheio de experimentações ideológicas por regimes totalitários de longa duração, extremamente infelizes e dos quais resultaram quase cem milhões de vítimas fatais, de onde se deriva que, quando o regime liberal de mercado erra, provoca milhões de perdas de empregos, enquanto os erros de regimes ideológicos, inclusive os religiosos, conduzem a milhões de perdas de vidas humanas. Lenine, Trotsky, Stalin, Mussolini, Hitler, Tojo, Didi Amim Dada, Lumumba, Fidel, Pinochet e centenas de outros compõem essa infame lista de flagelos da humanidade, facínoras cujas leis são desprovidas de razão, mas que arrastaram e ainda arrastam as maiorias de seguidores que pretensamente os apóiam, porque são estes os que são forçados a se manifestar enquanto os dissidentes são silenciados e mortos.
O avanço das democracias modernas indica, em primeiro lugar, crescente respeito à individualidade, à aceitação das diferentes formas de comportamento e de pontos de vista, do respeito à maioria composta de miríades de minorias; em segundo lugar uma economia composta pela multiplicidade de empreendimentos privados, estatais e mistos, com e sem fins lucrativos, todos disputando livre participação no mercado globalizado. Há uma enorme riqueza de variedade de atitudes, de meios e formas de expressão participando de um universo chamado mercado.
A crise econômico-financeira que vivemos, indica premente necessidade de regulação do mercado, não do cerceamento da liberdade de iniciativa, tão necessária ao desenvolvimento da humanidade, mas a preservação da igualdade de condições de competição e do respeito ao cidadão consumidor, usuário dessa diversidade de ofertas. Cabe aos Estados nacionais e supranacionais essa importante função, além, por certo, da manutenção da paz e da justiça.
O Estado brasileiro e todos os demais, como se comprova na presente crise, não reconheceram plenamente e não se adaptaram a essa realidade moderna. O corpo de leis desses estados nações reflete esse anacronismo. O Brasil, apesar de alguns conceitos esdrúxulos que ainda hoje estão sendo penosamente expurgados da Constituição Cidadã e do anacronismo de grande parte da CLT, tem sido capaz de apontar modernos caminhos legislativos. É hora do Congresso e a sociedade toda debater à luz destes novos horizontes. Certamente, há muito que refletir e inovar.
Afirmamos, na primeira parte deste artigo a respeito da lei eleitoral em trânsito no Congresso, que as nações democráticas modernas tendem a ser cada vez mais tolerantes às diversas formas de pensar e de comportamento. Uma ocasião, minha mulher, filha, genro, netos e eu visitávamos uma praia artificial recém inaugurada num país escandinavo. Era verão, mas o dia estava nublado e ventava, a temperatura devia estar abaixo dos quinze graus. Para nós, não era dia de praia, mas logo um casal chegou à beira d’água, tirou completamente a roupa e entrou no mar até a altura dos joelhos. Logo foram seguidos por meia dúzia de pessoas que não demoraram muito porque a água devia estar realmente fria. O fato é que isto aconteceu sem que o público presente se espantasse ou, mesmo, demonstrasse perceber a completa nudez pública de homens e mulheres. Certamente, entre as pessoas que se encontravam no píer e a tudo assistiam, haveria algumas que jamais ficariam desnudas em público; nem por isto foram à delegacia acusar comportamento indecoroso, simplesmente, acataram o direito alheio de agir livremente em troca do mesmo privilégio, todos respeitando os limites alheios. Isto é tolerância. Há poucos dias, em país muçulmano, uma mulher foi posta na cadeia por usar calças jeans. Isto é intolerância.
Outro ponto que adquire relevância e desperta discussão é o preceito republicano e democrático de completa separação entre Estado e Religião. Exemplo disto é o ato do governo francês de impedir o uso do xador nas escolas e repartições públicas. Para as autoridades francesas o uso do véu das islamitas em locais de propriedade do Estado é um esforço político-religioso de impor segregação sócio-religiosa em uma sociedade liberal, apartheid intolerante e viciosa cujo perigo já foi demonstrado com grande mortandade.
Certa vez, me encontrava num juizado de menores do Rio de Janeiro, no início do intervalo para almoço, quando o próprio juiz, de nome famoso pela competência, juntou-se a outros funcionários no meio do corredor central para rezar uma novena católica. A cena demorou poucos minutos, ao fim dos quais me dirigi ao magistrado e perguntei se aquele ato não seria anti-republicano, ao que ele respondeu: “É verdade, mas o efeito moral dessa desobediência civil melhora em muito o desempenho deste juizado”. Ao ouvir isto, ergui os ombros, sorri, cumprimentei e fui embora. Apesar de concordar com a lógica do juiz, discordo da ação. Assim como considero imprópria a mistura de Igreja e Estado que assisti há poucos dias, com a delegada da Polícia Federal à frente de uma procissão de carros do Estado conduzindo imagem santa à delegacia onde se realizou ato religioso. Todas as pessoas deveriam ter pleno direito de professar a própria fé, mas não o de ultrapassar a nítida fronteira que separa o que é de Deus do que é de César. Este é um tema, assim como a separação drástica do que seja público do que é privado que, ao ser resolvido e praticado, aperfeiçoará a ética na política.
O tema em pauta é lei eleitoral e reforma política e Política é a busca da paz, prosperidade e felicidade do povo, nessa ordem. Sendo assim, a busca do aperfeiçoamento das leis que regem as atividades políticas deve contemplar a imposição da paz em uma nação conturbada pelo crime generalizado em todos os meios e por todas as formas. Corrupção e apropriação particular do bem público sempre existiram neste país e, para ficar do fim da Ditadura Vargas para cá, os exemplos são inúmeros, do “mar de lama” ao “mensalão”. Mas o crime nas ruas - que vitimam milhares por tiroteios e balas perdidas e obrigam pessoas de bem a se aprisionarem atrás das próprias grades para se protegerem dos criminosos - é fruto de dois fatores: 1 - a organização introduzida nas prisões pela disciplina do ativismo ideológico guerrilheiro e terrorista; 2 - a política introduzida pelo primeiro governo Brizola no Rio de Janeiro de impedir a polícia de penetrar nas favelas em busca de criminosos a pretexto de evitar os contumazes abusos policiais contra a população pobre em geral. O primeiro fator gerou o Comando Vermelho, cujo modus operandi se alastrou pelo resto do país. O segundo criou a impunidade que permitiu a consolidação do crime organizado. Esse estado de coisas precisa ser urgentemente corrigido para que nossas cidades voltem a ter paz e isto só poderá ser realizado por adequado sistema de organização política do país, não apenas na lei eleitoral, mas na própria conceituação funcional e prioridades dos três poderes.
A nação brasileira precisa ser aperfeiçoada. Mas quem poderá fazer isto? Um governo leniente e adepto de cooptar a qualquer preço, atitude geradora do mensalão? Congressistas focados nos próprios interesses eleitorais, pecuniários e classistas a ponto de abdicar de suas melhores convicções, quando as tenham, e se submeterem à imposição de manter a “base aliada” a qualquer custo? O panorama é desolador. A última esperança é a de que o próprio sistema institucional democrático vigente possua virtudes suficientes para deixar passar, aos poucos, as boas medidas necessárias. Se, ao longo dos anos, uma constituição enviesada pode ser pouco a pouco corrigida e implantada a lei da responsabilidade fiscal, porque não uma série de medidas destinadas a aprimorar o sistema político? Esperança? É a última que morre...

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