10 de junho de 2020

Meia lágrima por um Pataxó

Sebastiao Imbiriba

Santarém do Tapajós, 14/08/1997

É madrugada na cidade fantasma. As longas e largas avenidas, desoladas e desertas, daquela Brasília cruel, abrigam apenas os pequenos redemoinhos de pó vermelho que a brisa morna levanta aqui e acolá.

Índio Pataxó.(Santa Cruz de Cabrália, Bahia) | FernandoPaoliello ...
Pataxó da Bahia

Vejo um índio de meia idade. Foi à capital em missão de sua tribo. Está hospedado em pequeno hotel, pagou adiantado e preencheu regularmente sua ficha. Mas, apenas por ser diferente, por estar vestido como índio que é, não lhe abrem a porta na madrugada. Humilhado, triste, desconsolado, desorientado, sai a perambular sem rumo, sem ter onde ficar, onde deitar seu cansaço, dormir um pouco, repousar para a luta do dia seguinte.

Vejo rapazes bonitos, saudáveis, bem vestidos, filhos de famílias de classe média, de altos funcionários, bem encaminhados, bem relacionados, cheios de expectativas perfeitamente realizáveis, alegres com a vida e contentes consigo mesmos. Vejo a exuberância da juventude em sua plena forma. É uma alegria vê-los assim tão joviais, expansivos, brincalhões a circular de automóvel pelas ruas desertas.

Que procuram eles? Uma menina desavisada a ser estuprada? Um travesti solitário a ser espancado? Um cachorro ou gato a ser atropelado? O que se passa na cabeça deles? Por certo, não pretendem ir à igreja a essa hora. Procuram diversão, algo que os tire da monotonia de ser feliz.

Então avistam o índio. Sem forças, deitara-se na calçada de um ponto de ônibus e dormira. Está ali, só, à mercê de qualquer intenção macabra. Pensamentos macabros é o que ocorre na cabeça dos belos jovens. O que fazer, perguntam-se. Silêncio. Não o despertem, deixem que ali fique até que estejam preparados. Partem quietamente em busca de combustível.

Voltam pouco depois. É apenas um mendigo, um candango pé rapado, talvez até um índio. Certamente dará bela fogueira. Será bonito ver a tocha humana levantar-se e perambular agitando os braços. Nem vai gritar. A primeira golfada de ar lhe queimará as cordas vocais. Maravilhoso espetáculo. Uma celebração.

Num instante, encharcam de álcool o infeliz. Antes que o índio desperte assustado, afastam-se dois passos e lhe jogam fósforos acesos. A chama azul soa surda em pequena explosão. O índio nem consegue levantar-se. Fica ali, no chão, agitando-se freneticamente. As labaredas logo tornam-se amarelas ao consumir a pele e queimar a gordura. O cheiro ativo de carne humana assada chega às narinas fidalgas. Os jovens gozam a sensação de poder absoluto, o poder de vida e morte. Gozam a visão da morte, o cheiro da morte. É o prazer supremo. Então, calmamente, entram no carro e partem. Vão em silêncio, felizes, realizados, comungando a expiação da vítima ao deus do horror, da estupidez e do absurdo.

As chamas queimam músculos e tendões. O índio não consegue mais se mover. Apenas agita-se nervosamente no sofrimento atroz. O corpo todo queimado. Os pulmões queimados. Os olhos, as narinas, o rosto, tudo queimado. De nada adianta o socorro. O sofrimento continua durante a longa agonia que o corpo rijo e forte estende por mais tempo.

A sociedade estremece. A TV notícia, o jornal comenta, a revista analisa, o político discursa. Um diz uma coisa, outro diz outra. É mais um fato macabro a ser comentado em nosso cotidiano. Nada que tenha consequências. Nada que seja consistente.

Adeus Pataxó anônimo, celebridade na agonia. A sociedade faz o que pode para limpar a consciência e, aliviada, chora por ti meia lágrima.


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