24 de junho de 2008

Vivências – a natureza das pessoas

Matheus, gerente de empresa estatal, saiu do escritório apressado, trabalhara até tarde, concluindo o relatório que a secretária enviaria à matriz no dia seguinte. Agora tinha que correr. Os postos fechavam às oito e ele tinha que encher o tanque do carro. Mas não conseguiu. O combustível daria para chegar ao compromisso com uns amigos e ir pra casa em seguida.

O grupo estava no restaurante usual, em frente à praia, tomando aperitivos para o jantar, antes de continuar a noite em outros lugares onde poderiam beber e dançar. Ali encontrou Fernando, colega que viera da sede da empresa ajuda-lo em negociação com o governo do estado, duas primas deste, Adriana e Andréa, e o namorado da primeira, secretário da Assembléia, deputado estadual Alcides, um bom aliado que, pelas relações com aquele grupo, abria as portas para entrevistas com o governador e os secretários.

O jantar transcorreu num ambiente ameno e cordial, comeram lagosta e tomaram vinho. Não se poderia dizer que aquele era um jantar de negócios. Assuntos comerciais foram discutidos no gabinete do deputado, pela manhã. Estavam ali apenas pela diversão. Alcides nem respondeu quando Matheus se ofereceu para dividir a despesa, mandou faturar a Secretaria da Assembléia. A conta seria paga com verba oficial.

Iam assistir a um show em boate chique quando Matheus se desculpou, estava sem gasolina. "Não é problema", disse Alcides e imediatamente, apesar das recusas, ordenou que o chofer do carro oficial, que o aguardava na porta do restaurante, transferisse ao tanque de Matheus o suficiente para rodarem o resto da noite. Matheus prometeu a si mesmo que devolveria a gasolina no dia seguinte.

Já na boate, Alcides propôs o uso de recursos da estatal em esquema que gerasse gordas comissões aos cavalheiros ali presentes. Matheus, mostrando-se ofendido, recusou. "Por quê?", perguntou Alcides. "É imoral", respondeu Matheus. O deputado argumentou que isso era irrelevante, havia muito em jogo para deixar conceitos de moralidade atrapalhar, insistiu em fazer o negócio. O ambiente constrangedor fez Adriana alertar Alcides de estar ofendendo Matheus. O político então perguntou: "quer dizer que usar meu prestígio pessoal para alavancar negócios de sua empresa junto ao governador não é imoral, jantar lagosta à custa da Assembléia não é imoral, abastecer o tanque com gasolina do estado não é imoral, beber meu uísque não é imoral, então, qual a diferença?". O silencio foi demorado e profundo. No dia seguinte, Fernando retornou à matriz. Pouco depois, Matheus foi demitido. È extremamente difícil ser correto, num mundo em que os interesses pessoais predominam, quando não se está sempre prevenido contra as armadilhas. Apesar da ratoeira em que caiu, Matheus tenta manter a dignidade e a atitude ética.

Há pessoas excepcionais, fora da regra geral na exuberância do talento, ou falta dele, na virtude extrema, ou viciosidade absoluta. Mas não constituem a massa. Há gradações sutis que diferenciam os indivíduos, torna-os desiguais. Enorme proporção de pessoas adota comportamento mais conivente com a circunstância do que colado à retidão de caráter. Tal visão cética é fruto da observação e do estudo e, neste caso, o mestre supremo e insuperável é Maquiavel, o realista. Carl Max, o idealista, acredita na virtude essencial do ser humano, necessária, mas não suficiente, para a existência da propriedade comum na sociedade sem classes. A história demonstra, com exemplos continuados, a impossibilidade, não do surgimento, mas da permanência de qualquer sistema igualitário. As pessoas são instintivamente interesseiras e se demonstrarão viciosas quando a oportunidade se apresente.

A humanidade percorre longo caminho de aperfeiçoamento ético, na busca constante de que, no interesse do melhor convívio coletivo, pessoas e instituições se tornem cada vez mais justas e corretas. As pessoas são formadas pela educação de berço, pelo exemplo e costumes familiares e comunitários, pelo que vê na mídia e pela educação formal que estabelecem padrões de comportamento. Tais padrões são mantidos por fatores como a religião ou a política, sistemas de poder formais e informais, influencia de indivíduos ou de grupos. Mas são os interesses particulares de cada um, nas circunstâncias adequadas, na "oportunidade que faz o ladrão", que provocam os desvios de conduta. E são tais apelos e ambientes que apontam nas mais diversas direções, das mais sublimes inspirações artísticas, religiosas e humanitárias, às mais perversas e viciosas demonstrações de crueldade e sadismo.

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