Sebastiao
Imbiriba
05/05/2002
Josias
era homem grande e forte. Sertanejo da Paraíba. Usava sua grandeza e força para
impor respeito a todos. E todos o chamavam de Quebra Pote.
Foi
quando ele teve que enfrentar um engraçadinho que queria abusar da Izildinha.
Um tal de Carlinhos, desordeiro conhecido na redondeza. Se engraçou pros lados
da Izilda, filha da irmã de Josias. Foi lá, paquerou, namorou, abusou e
abandonou. Izildinha vivia pelos cantos chorando abandono e gravidez.
Josias
soube do fato por sua irmã, mãe da menina. Bem, nem tão criança assim, embora,
aos vinte anos, ainda fosse virgem. Mas, para Josias, a sobrinha não passava de
recém-nascida. Quando soube, Josias se encheu de raiva. Foi até a casa dos pais
de Carlos. O desordeiro não estudava, não trabalhava. Tudo o que fazia era
perturbar o bairro todo e aborrecer os pais, embora estes tenham tentado mil
vezes expulsá-lo de casa. Josias foi chegando e foi quebrando. Carlinhos, também
conhecido como Carlinho Estripulia, estava na cama com a mulher do vizinho, na
cama do vizinho, é claro. Foi quando ouviu o estardalhaço. Pensou que fosse o
marido e saiu pela janela. Vestiu as calças mas esqueceu cueca e sapatos. Foi
se esconder na casa dos pais.
Entrou
e viu toda aquela desordem. O pai, sentado no chão, segurava a orelha esquerda.
Josias quase a arrancara com tapa que o tornou surdo daquele lado. A mãe
choramingava, sentada num banquinho, tentando imaginar o que seu rebento fizera
desta feita.
Carlinhos
não teve tempo de dar meia volta. Foi agarrado pela goela e atirado
ponta-cabeça conta a parede. O algoz levantou a vítima pelos cabelos e o
colocou sentado em cima da mesa da sala e disse: “Repara bem seu filho da puta.
Tu vais casar com a Izildinha. Se ela vier me fazer alguma reclamação, é isto o
que vai acontecer contigo”. Pegou uma tranca atrás da porta e deu certeiro
golpe num grande cântaro em cima da bancada da pia. Foi água e pedaço de barro para
todo lado.
Carlinhos
Estripulia casou com Izildinha e Josias ganhou o apelido de Quebra Pote. Assim
era Josias. Todos os respeitavam. Quando queriam se referir a alguém realmente
brabo, falavam de Quebra Pote. E se tinham um problema que só se resolve com
brabeza, era Quebra Pote que chamavam para resolver.
Um
belo dia, Quebra Pote escorregou, caiu numa vala e quebrou o pescoço. Agora
todo mundo amava Quebra Pote e não tinha quem lhe quisesse mal. Defunto
importante, considerado. Foram logo avisar todo mundo: delegado, padre, dono do
cartório e até o deputado que viera, em companhia do sobrinho, candidato a
vereador, fazer campanha política.
Quando
o deputado chegou foi aquele alvoroço. Se a casa já estava cheia, agora já não
se podia andar. A cachaça corria solta e mais da metade já estava para lá da estratosfera.
Cavaquinho e violão animavam o velório. Dançavam homem com homem, mulher com
mulher. Mas abriram caminho para o deputado chegar até o caixão do defunto lá
no fundo da sala. Ali já estavam delegado, padre e dono do cartório, que foram
afastados para dar lugar ao deputado e ao sobrinho candidato.
Enquanto
isso os três filhos de Izildinha corriam de um lado para outro se empurrando e
pisando os calos de todo mundo. Um tinha a cara do carteiro, outro era
parecidíssimo com o entregador da farmácia e o caçula todo mundo achava que só
podia ser filho do próprio Quebra Pote. Afinal de contas, se Izildinha tinha
concedido gentilezas gratuitas a carteiro e entregador de farmácia, porque não
retribuiria a quem lhe havia prestado favores tão relevantes. Mas ninguém tinha
nada com isso e Carlinhos Estripulia não se atrevia a protestar. A lembrança do
pote quebrado não o permitia.
Então
chamaram o fotógrafo. Lá veio ele, de colete e tudo, tirar foto do deputado com
o defunto. Mas só saia o deputado. O defunto ficava escondido no caixão. Trouxeram
uma cadeira para o artista subir, mas não dava certo. “É o ângulo”, alegou o
fotógrafo. Experimentaram levantar um pouco a cabeça do caixão. Nada. Então,
enquanto uns levantavam a cabeça, outros baixavam os pés. Assim, o rosto de Quebra
Pote aparecia por traz do vidro, à altura do peito do deputado. Ficou o
deputado atrás, sobrinho candidato de um lado e padre d’outro. Foto histórica
batida e repetida. Não se podia perder a efeméride.
Depois
das fotos, levaram o deputado e o sobrinho candidato a vereador para comer
pupunha com café e cumprimentar a mãe de Izildinha, a irmã do falecido na
pequena casa ao lado, quase anexa. A mulher sofrera um acidente e, há muitos
anos, vivia em cadeira de rodas. “Ô seu deputado. Que bom que o senhor veio no
enterro do mano velho. Está vendo só. Não adiantou. O danado vai enterrar a
brabeza dele toda em baixo da terra. Aquele desgraçado. Podia ter arranjado
casamento melhor pra Izildinha. Mas o que ele queria era passar ela na cara
também. Eu já fui lá ver o corpo. Mas esta cadeira não ajuda e, com aquele povo
todo que vem só para tomar pinga, não posso nem me despedir do safado. Que Deus
o guarde. Bem longe de mim”.
Ai,
chegou a hora do enterro. Tinha de ser numa colônia mais de hora e meia
distante da cidade. Era onde a família tinha castanhal e fazenda de gado. O
cemitério ficava na vila, ao lado da capela. Foram três ônibus fretados. Mais o
caminhão que carregava o defunto com os três filhos de Izildinha pulando em
cima, além de Zé Caninha que, como sempre e o nome indica, não se aguentava em
pé e se arriou atravessado com a barriga por cima do caixão. Quebra Pote não
reclamava de nada.
Quando
descarregavam a encomenda, o caixão despencou e a tampa se abriu. Quebra Pote
foi de cara no chão. Foi um oh! geral. Todo mundo consternado. Parado, olhando
a cena. Zé Caninha correu para ajudar e tropeçou. Caiu por cima do de cujus. O
deputado viera na boleia do caminhão, junto com o cunhado do falecido. Não
sabia o que fazer. Mas não podia faltar às expectativas. Então deu ordens para
limparem o corpo de Quebra Pote e o recolocarem no caixão. Foi aplaudido.
O
féretro atravessou a vila. Bode Velho, cabo eleitoral de antigo aliado do
deputado, não perdeu a deixa. Juntou umas mulheres que vieram num dos ônibus e
começou a dar vivas ao deputado e ao sobrinho candidato a vereador. Ele gritava
e as mulheres aplaudiam. Por todo o caminho.
O
caixão foi colocado ao lado do buraco já cavado. Era onde a mãe do falecido
havia sido enterrada anos antes. A ossada aparecia. Alguém falou: “Não pode
enterrar em cima”. Mão de Paca pulou no buraco e jogou para fora a caveira de
Dona Betinha. “Segura aí”, falou ele. Quem segurou foi Zé Caninha que ficou
acariciando a peça.
O
padre encomendou o defunto. Foi discurso rápido. Ele tinha que fazer casamento
na cidade. Bode Velho aproveitou e fez o comício. “Nós estamos aqui para
homenagear três pessoas. Um macho morto e dois políticos que nós estamos
comprometidos. O deputado nós elegemos da outra vez. Viva o deputado! Agora é a
vez do sobrinho candidato a vereador. Promessa é promessa e nós vai cumprir.
Viva o vereador! O defunto o padre já encomendou. Não sabemos se vai para o
céu. Temos que esperar sete dias. Não sabemos se vai ou não. Depois de sete
dias a gente sabe”.
Alguém
empurrou Zé Caninha na beira da cova. Ele se virou para trás, tentando se
equilibrar. “Vai empurrar tua mãe, seu bosta de merda”. E sacudia o crânio a
cima da cabeça, ameaçadoramente.
Começaram
a baixar a urna mortuária. Uma dificuldade. Não dava certo. Alguém pulou dentro
para apoiar melhor. Era de novo Mão de Paca. O caixão caiu. O ajudante perdeu a
unha do dedão e saiu da cova ganindo de dor. Os filhos de Izildinha pulavam a
cova de um lado para outro. Quando viram o dedão escorrendo sangue, não paravam
mais de rir. Caíram no chão se contorcendo. Todo mundo caiu na gargalhada.
Deputado e sobrinho candidato a vereador se afastaram para rir à socapa, sem
ofender a viúva.
Conseguiram
endireitar a urna. Começaram a jogar terra, esquecendo a caveira nos braços de
Zé Caninha. Recomeçaram tudo de novo, cobriram mãe, filho e caixão. Finalmente,
jaz em paz Quebra Pote.
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