Meus pais me batizaram com o nome de John Dillon, e nasci na cidade de Santarém do Tapajós, na confluência desse grande rio com o imenso Amazonas. Os Dillons têm origem remota na França, de onde o Conde De Lyon partiu com toda a família e as joias que pode arrebanhar, durante o Regime do Terror do famigerado Maximilien de Robespierre, que se seguiu à Revolução Francesa. Refugiou-se na Irlanda onde o heráldico nome De Lyon transformou-se no plebeu Dillon.
Mas a saga dos Dillons não terminaria na Irlanda, de onde fugiram
da fome das batatas e ferocidade dos ingleses para prosperar como grandes
plantadores de algodão na Carolina do Sul. Após a Guerra Civil, juntaram o
pouco que restou da derrota para os Yankees em 1865 e, mais uma vez, junto com
outros fazendeiros sulistas, migraram para o Brasil, onde compraram terras em
Santarém do Tapajós, na Amazônia.
Um dos descendentes desses Dillons migrados para a
misteriosa Amazônia foi meu avô, Jack Jr., que levara vida cheia de aventuras. Antes
de morrer, o avô me chamou ao seu leito e, circunspeto, colocou em minhas mãos
o seu mais precioso bem, um talismã negro que ele possuíra por mais de setenta
anos. "Jamais se desfaça deste muiraquitã. Prometa", murmurou ele.
"Prometo", disse eu solenemente.
Conhecedor do caráter profundamente honesto de meu pai que,
no entanto, tinha uma personalidade bastante alegre e ainda mais volúvel,
incapaz de prosseguir seriamente com qualquer projeto um pouco mais longo, meu
avô deixou para mim em testamento praticamente todos os seus bens, colocados em
um trust, aos quais eu só teria acesso após completar os vinte e um anos.
Após o falecimento de meu avô, como era de se esperar, as
coisas não foram bem com as finanças de meu pai e seu negócio de então, a
oficina de marceneiro. Ele usava as preciosas madeiras de lei da Amazônia e produzia
móveis de luxo para as famílias abastadas. Suas portas lavradas ainda podem ser
vistas nos casarões elegantes.
O problema é que, no fim do século dezenove, os ingleses
levaram sementes da seringueira para a Malásia e começaram a produzir borracha
muito mais barata do que os seringais da Amazônia. A região toda empobreceu. No
período entre as duas Grandes Guerras, grandes fortunas se arruinaram, e muitos
milhares de seringueiros abandonaram as matas e se tornaram pedintes nas
cidades.
Durante a Segunda Grande Guerra, houve um surto de
prosperidade devido à ocupação dos seringais asiáticos pelos japoneses. Os
Estados Unidos da América injetarem muito dinheiro para reerguer a produção dos
seringais nativos. Após a guerra, apesar dos esforços do governo brasileiro
para manter a produção, aos poucos, a concorrência do látex da Malásia derrubou
os preços abaixo dos custos de produção dos seringais brasileiros. Tudo isso
foi enfrentado por Jack Jr., meu avô, com toda competência e galhardia. Tanto
assim que, se já começara rico, ficou mais rico ainda, não só com negócios de
borracha, mas com todos os outros projetos que seu espírito empreendedor
realizava continuamente.
Meu pai era outra coisa. Em outro relato tentarei explicar
as razões de sua má sorte. O fato é que, mais uma vez, ficou sem clientela.
Meus cinco irmãos, duas irmãs e eu tínhamos que ajudar na oficina de meu pai e
na cozinha de minha mãe.
Assim, tive que enfrentar alguns obstáculos para estudar,
formar-me engenheiro e iniciar uma profissão que não me satisfazia. Aliás,
exercer alguma profissão é coisa que não está à altura de meu formidável
talento, razão pela qual, já na faixa etária dos quarenta, prefiro continuar
estudando.
É por isso que graças a sucessivas bolsas, obtive
bacharelado também em economia e sociologia, prosseguindo na vida acadêmica até
o doutorado em Harvard e o circuito internacional de cursos, conferências e
seminários. Frequentemente, atuo como professor convidado nas mais importantes
universidades. Não há lugar melhor para entreter relações com mulheres cultas,
inteligentes e, por isso mesmo, excelentes parceiras, principalmente na cama. É
vida muito agradável, e ainda me pagam pelo que mais gosto de fazer, palestrar,
falar em público, principalmente sobre mim mesmo. Aliás, a única despesa que
tive na vida acadêmica foi o ano que passei em Florença num curso de História
da Arte. Mas essa já é outra história.
Como já disse, meu pai nunca foi um homem de muita sorte.
Meu avô sim, e eu também. Já disse, e repito sempre, que detesto essas
crendices populares. Meu brilhante intelecto rejeita qualquer coisa que não
caiba em um silogismo perfeito. Mas o povo comenta, maliciosamente, como
sempre, que a sorte de meu avô se devia à posse do miraculoso muiraquitã negro
que hoje está em meu poder.
Ora, os simplórios atribuem poderes mágicos a qualquer
muiraquitã, e mais ainda a esse, que é único e negro. Dizem que é ele a causa
da incrível sorte e felicidade de meu avô, mais ainda a do padrinho dele, o
ilustre barão do Solimões; e toda a desastrada vida de meu pai se deve à falta
de um muiraquitã, mesmo que um simplesinho, desses que se encontram em alguns
museus.
Bem, é fato que a sorte nunca bafejou meu pai, e que ele,
também, jamais possuiu qualquer talismã, nem mesmo desses que ciganos, mães de santo
e pajés oferecem enganosamente aos crédulos que os sustentam, muito menos um
sagrado muiraquitã verdadeiro, dos verdes, garimpado no Lago da Lua pelas Icamiabas.
A vida dele sempre foi muito difícil e as desgraças se abatiam sobre ele com
maior frequência e intensidade do que os pingos das chuvas torrenciais que se
derramam em tempestades sobre a Amazônia durante mais da metade do ano. Mas ele
tinha espírito alegre e nunca se abatia, aceitava tudo com muita naturalidade.
Era um otimista e sonhador.
Encarar o mundo com otimismo e confiança pode ser preciosa
virtude ou maléfico defeito, dependendo da pessoa e das circunstâncias. Quando
o final é feliz, tudo bem. Mas é necessário aguardar o final, e, para alguns,
jamais acontece o “happy end”. Com meu genitor era assim.
Meu pai foi um típico menino nascido e criado em Santarém
do Tapajós, nadava da prefeitura, onde hoje é o Centro Cultural João Fona, que chamamos
de museu, até a Ponta Negra, que demarca a confluência do Tapajós com o
Amazonas.
Ponta Negra é o extremo oriental de extenso istmo que
separa os dois grandes rios, desde o Lago Grande do Curuái, pelo lado do
Amazonas e o rio Arapiúns, afluente do Tapajós. Com o passar dos anos e das
cheias, a correnteza do Amazonas lavou e levou as terras dessa ponta, que antes
chegava até diante da antiga prefeitura. Em seu lugar, mais ao centro do
Amazonas, surgiu uma ilha de aluvião. Entre os dois pontos, há uma distância de
mais de três quilômetros, no meio da qual as águas barrentas do Amazonas se
encontram com o azul do Tapajós, mais esverdeado na seca, devido às algas, ou
mais avermelhado na época das chuvas, cor da serapilheira inundada. Os meninos
costumam nadar essa distância, ida e volta, por simples brincadeira. Coisa de
ribeirinhos da Amazônia.
Além de nadar no Tapajós, adorava cavalgar e não se
continha até a chegada das férias escolares, quando ia para as fazendas de gado
de meu avô. Quando meu pai completou seis anos, o pai dele o presenteou com
sela, bridão, botas, rebenque e o ensinou a montar. Isto é, montar ele sabia,
mas não possuía a técnica de dominar o ginete e fazê-lo apartar e conduzir o
gado e tudo mais que um verdadeiro vaqueiro deve saber. E, com seu jeito
peculiar de conduzir as pessoas, gentilmente ensinou todos os segredos da arte
de vaquejar ao menino. Além disso, seguindo a tradição dos Dillons na arte da
equitação, ensinou-o a saltar obstáculos com elegância de verdadeiro cavaleiro
e até o fez competir em torneios da Sociedade Hípica Brasileira. Infelizmente,
como já disse, meu amado pai não perseverava em seus projetos e não pôde tornar-se
o campeão que meu avô ambicionara.
Meu avô o levava às fazendas de várzea do Lago Grande e às
de terra firme do Arapiúns, para onde o gado era conduzido nos períodos de
cheias. Na vazante, a várzea se transformava em extensos campos de belo frescor
verdejante, como imensas esmeraldas engastadas entre igapós e florestas. É
emocionante ver o capim crescer quando as águas baixam; num dia estão deste
tamanhinho, no outro já quase dobrou de tamanho. É a riqueza das terras de
aluvião, da energia de um sol equatorial e da umidade constante. Ali, o gado
cresce e engorda que é uma beleza. Ali, o menino disparava em correrias, para
lá e para cá, montado no garanhão que o avô lhe dera para acompanhar os arreios
e as botas.
Uma noite, o cavalo desapareceu. Quando meu pai, isto é,
aquele menino de seis anos que no futuro seria meu pai, na manhã seguinte, ao raiar
do sol, antes mesmo de tomar o desjejum, levou os arreios para selar o cavalo,
não o encontrou no curral. A porteira estava fechada, as cercas intactas,
nenhum vestígio de ataque de cobra ou onça. O vaqueiro que, por ordem expressa
do fazendeiro, sempre acompanhava o menino, se benzeu. “É coisa do demo”, disse
ele.
Logo juntou gente. Uns diziam que fora Cobra-grande,
outros que era coisa de Curupira. Houve até um que falou em boto, mas todos
caçoaram dele, porque nunca ninguém viu nenhum boto montando cavalo por estas
bandas, muito menos desaparecendo com ele.
Aliás, nunca ninguém viu nem Cobra-grande, nem Curupira, mas todos acreditavam piamente nesses seres fabulosos. Não era justo caçoar do rapaz só porque ele acha que o boto levou o cavalo para o fundo do lago. O que fazer, a maldade das pessoas é assim mesmo, ainda mais numa roda de vaqueiros, onde novato só serve para estas coisas, ser alvo permanente de chacotas e brincadeiras maldosas.
Aliás, nunca ninguém viu nem Cobra-grande, nem Curupira, mas todos acreditavam piamente nesses seres fabulosos. Não era justo caçoar do rapaz só porque ele acha que o boto levou o cavalo para o fundo do lago. O que fazer, a maldade das pessoas é assim mesmo, ainda mais numa roda de vaqueiros, onde novato só serve para estas coisas, ser alvo permanente de chacotas e brincadeiras maldosas.
O rapazinho ficou desolado. Meu avô mandou procurar em
toda parte. Até despachou um empregado para falar com o delegado de polícia,
apresentar queixa do desaparecimento, possivelmente roubo do cavalo e de umas
reses que logo se verificou que também sumiram.
Mas o pior não foi isto. Meu avô tinha que ir à Vila
franca, na boca do Arapiúns, coisa relacionada com borracha, látex em tonéis de
petróleo, que um comerciante conhecido por Chubico explorava na margem direita
desse rio. O menino foi com ele e aproveitaram para subir até a cachoeira do
Aruã. A viagem foi divertida e serviu para que esquecessem por algum tempo o
sumiço do cavalo.
Desceram de canoa o Lago Grande até a Vila Socorro, de
onde atravessaram campos de capim barba-de-bode e savana rala até o Lago da
Praia, no Arapiúns. Ali os esperava um batelão à vela para os levar, rio acima,
até a cachoeira onde meu avô pretendia, junto com outros fazendeiros e
negociantes, construir uma usina hidroelétrica. Tinham o sonho de produzir
energia para movimentar máquinas de beneficiamento de produtos daquela região,
coisa que ficou apenas em uma pequena turbina, porque meu avô e seus sócios se
cansaram da burocracia do governo e das leis restritivas ao progresso.
Depois de mergulharem nas águas abaixo da cachoeira e
visitarem a pequena casa da turbina, desceram o rio até a Vila Franca para
tratar de negócios. Dali, atravessaram a grande baía formada pelo Tapajós,
enfrentando ventos fortes e ondas de mais de três palmos, um grande perigo para
barcos regionais de bordas rasas. O menino ficou deveras apavorado com o rugir
do vento rasgando as velas, com o corcovear do batelão subindo e descendo as
vagas, as ondas rebentando contra o costado e lançando água em cima dos
passageiros. A criança se agarrava desesperadamente em meu avô, chorava e
gritava de terror. Por mais que meu avô tentasse acalmá-lo, o menino ficava
cada vez mais aterrorizado.
Quando chegaram à Santarém do Tapajós, numa viagem em
barco à vela que durou quase duas semanas, mais uma triste notícia os esperava,
a de que o galpão, ao lado da casa grande da fazenda do Lago Grande do Curuái,
havia pegado fogo, e o incêndio destruíra tanto o prédio quanto tudo o que
havia lá dentro, implementos, utensílios, arreios, rações, vacinas e remédios
para o gado.
Meu avô e meu futuro pai seguiram imediatamente em uma
lancha a vapor que pertencera à Amazon Cable, companhia telegráfica inglesa que
explorava o cabo submerso que percorria todo o Amazonas desde os tempos áureos
da riqueza da borracha. Era um belo barco de linhas suaves, esguio e muito
veloz, cuja finalidade original era mover-se rapidamente em serviços de reparo
nos cabos e estações telegráficas. Não se prestava para negócios de gado ou
borracha, e meu avô o comprara em leilão, no fechamento da companhia, apenas
para ter um veículo rápido para se locomover com presteza quando necessário e,
além disto, porque queimava lenha que podia ser obtida em qualquer lugar da
Amazônia, ao contrário do óleo diesel. A desvantagem é que exigia tripulação
mais numerosa para alimentar as caldeiras. Mas era um barco muito elegante,
lindo de se ver singrando as águas dos rios e agradável de ouvir sua máquina
muito mais silenciosa do que os motores a explosão.
Chegaram à fazenda em menos de doze horas, subindo o rio,
e, como haviam partido de madrugada, era ainda dia claro. Ficaram consternados
com a desolação, tudo queimado. Por pouco o fogo não se propagara até a casa
grande, graças aos vaqueiros que abriram um aceiro que não permitiu ao vento
levar adiante as labaredas.
Apesar de estar tudo queimado, era possível identificar
muitos objetos, a sela do fulano, o bridão do sicrano, mas não se encontrou
nenhum vestígio do selim de meu pai, nem ao menos uma peça sequer de metal, uma
argola ou estribo. Meu avô ficou possesso de raiva, mas manteve a compostura de
sempre. Mandou que todos os vaqueiros e outros empregados formassem um círculo
e os encarou, um por um, com aquele seu ar severo que fazia qualquer um baixar
os olhos diante dele.
Depois de fazer o círculo completo, voltou ao novato, aquele
que fizera gracejos a respeito de botos montados em cavalos. Mandou que se
retirasse da fazenda imediatamente, que pegasse uma “montaria”, uma pequena
canoa, da fazenda, e desaparecesse. Não queria encontrá-lo nunca mais.
A sela e os arreios foram encontrados, às margens da
floresta, pelos cachorros, na caçada a uma suçuarana que andava comendo
bezerros. Estavam bem abrigados por touceiras de capim, à espera de quem os
viesse buscar. Não poderiam ser vistos, mas os cães lhes sentiram o cheiro e
latiram em volta. O garanhão de meu futuro pai nunca mais foi encontrado.
Talvez tivesse sido vendido a algum comerciante que o levaria para o Marajó,
onde encontraria bom preço sem perguntas embaraçosas. Também nunca mais se teve
notícia da “montaria” levada pelo peão, mas o corpo do rapaz foi encontrado,
dias depois, em cima de uma ilha de capim flutuante, dessas arrancadas das
margens do rio pela força do Amazonas, preso aos galhos do igapó na boca do
Arapixuna, o furo que liga o grande rio ao Tapajós na época das cheias. A barriga
do peão estava enorme e a cabeça partida ao meio por tremendo golpe de terçado.
Meu avô sempre negou que tivesse algo a ver com a morte do
peão. Ele poderia matar se fosse o caso de defender a vida própria ou de
terceiros, mas era sabido que seu caráter não permitiria que se envolvesse em
assassinato. No entanto, as más línguas sempre lhe apontaram a
responsabilidade, o que contribuía para que, além de ser muito respeitado,
fosse também muito temido. Também nada foi provado, nem nada foi investigado, a
última coisa desejada pelo delegado seria se indispor com meu avô. Um bilhete
ao governador bastaria para que o policial fosse desterrado para local
inabitável. O fato é que, se todos o respeitavam, passaram todos a temê-lo, e
nunca mais ninguém se atreveu a roubar o que quer que fosse de suas
propriedades, fazendas e plantações.
Aquela viagem, a perda do ginete, a aterrorizante
tempestade no Tapajós, a visão do incêndio e, depois, a do peão com a cabeça
decepada ao meio, tudo foi muito perturbador, e o menino jamais conseguiu se
recuperar totalmente. Meu futuro pai ficou deprimido por várias semanas, e,
somente quando a avó o levou a passear em Manaus, é que ele aos poucos se
recuperou da primeira das que, depois, passaram a se denominar as crises dos
seis anos de meu pai. Crises periódicas que ocorreram aos seis, doze, dezoito
anos, e assim por diante. Não houve crise dos trinta e seis, mas, a essa altura
ele já estava morto.
Meu avô jamais o perdoou. Não admitia que seu próprio
filho, no seu entender de machista radical, comum naquela época, fosse um
covarde que temesse umas ondinhas de nada do Tapajós ou que não encarasse a
coisa mais infalível que existe, a morte. O relacionamento entre os dois foi
sempre distante a partir de então. E, quando eu nasci, todo seu afeto e toda
sua atenção foram centrados em mim.
Continua...
Em breve o livro será publicado.
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