Originalmente
publicado em Jornal de Santarém 02/11/2001
Há alguns anos, em acalorados debates sobre
temas políticos, minhas amadas Thereza Lúcia e Luciana, filha e neta,
respectivamente, me encurralaram com o ardor da juventude e idealismo apoiado
em enormes conhecimentos nas áreas da literatura, filosofia, sociologia,
política, etc., de onde extraíram petardos que acachaparam minha pobre
ignorância. Tal veemência me pareceu, por vezes, próxima do dogmatismo intransigente
e fiquei a ponderar se eu próprio não poderia estar assumindo posição radical,
inflexível, xiita. Recordando os fatos, lembrei-me do esquema que aqui reproduzo.
A curva a cima, reproduzida de The Act of
Creation, by Arthur Koestler, Arkana, London, 1984, pg. 332, posiciona diversas
áreas do conhecimento segundo os respectivos graus de objetividade. Quanto
maior a objetividade de uma matéria, maior sua verificabilidade. Isto é, melhor
pode ela ser comprovada por métodos matemáticos e, portanto, maior a certeza.
Por outro lado, quanto menor a objetividade, maior a componente emocional,
maior a dificuldade em exprimi-la por meio de equações e, portanto, maior a
incerteza. As ciências denominadas exatas são as de maior grau de objetividade,
verificabilidade e certeza. Arthur Koestler discorre sobre o tema com grande
precisão lógica, profundidade científica e beleza literária.
Muitas vezes eu me apanho sendo mais incisivo
e mais dogmático do que o dever de cortesia me permite. Eu gostaria de ser mais
isento, mais equânime, mais objetivo e, em consequência, mais justo.
Por isso, fiz para mim mesmo um jogo que
volto a praticar sempre que o remorso me apanha. Na tentativa de ganhar um
pouco mais de certeza e clareza nos meus pensamentos, tento acomodar, na curva
acima, conforme os respectivos graus de objetividade, alguns documentos,
personalidades, ramos do conhecimento, e
atividades da seguinte lista: Agricultura, Artigos que Leandro Konder e Roberto
Campos, Comércio, Constituição da República Federativa do Brasil, Constituição
dos Estados Unidos da América, Declaração da Independência dos EUA, Declaração
dos Direitos do Homem da Revolução Francesa, Direito Civil, Direito Criminal,
Economia-política, Finanças, Física, Indústria, Manifesto Comunista de Karl
Max, Platão, Propaganda política na TV, Sócrates, Stephen W. Hawking.
A lista pode variar. O jogo consiste, por
exemplo, em comparar o grau de certeza, a confiança que podemos depositar na
informação contida em um exame de ressonância magnética computadorizada e a
notícia de que a Cobra Grande de Óbidos acabou de engolir uma canoa de
pescadores e todos os seus ocupantes. Há gente que acreditará mais nesta
estória do que no exame médico. Qual o grau de objetividade encontrável em
textos de Leandro Konder e de Roberto Campos?
A releitura dos documentos citados é parte do
exercício. Acredito que, após este pequeno jogo, será possível que passemos a julgar
certas posturas de pensamento e opinião, religião, ideologia, política - todas
fortemente apaixonantes, prenhas de dogmatismo irascível - conforme a
relatividade dessas matérias e seus conteúdos de subjetividade e emotividade.
Pessoas cultas, bem informadas, honestas, de boa-fé,
oriundas de mesmos estratos étnicos e sociais, formadas nas mesmas
universidades, exercendo as mesmas profissões, em tudo e por tudo semelhantes,
podem ter posições ideológicas e preferências políticas antagônicas que
defendem intransigentemente até à morte. Isto sem considerar ambições de poder
quase sempre inseparáveis de motivações ideológicas.
A humanidade é atavicamente expansionista.
Este é um assunto a ser analisado especificamente, em outro lugar, mas a
história é rica de exemplos: medo-persas, greco-macedônios, romanos, mongóis,
etc. No século XX, desgraçadamente, ideologias foram subordinadas por
imperialismos atávicos: o socialismo nacionalista, pela necessidade de espaço
vital da raça pura teutônica; o socialismo internacional, pelo
expansionismo eslavo, herdeiro de Gengis Kahn. Ideologias usadas como pretexto,
como pano de frente. O Corão e a Bíblia, da mesma forma, têm servido para
escravizar povos sem conta. A cada momento, sob disfarces diversos, encontramos
belas ideias a serviço de ambições pessoais e coletivas, do dogmatismo, do
fanatismo.
A humanidade em nada está sendo diferente neste limiar de novo
século e novo milênio.
Espero que saibamos perceber isto e espero
que saibamos retirar as paixões de nossas convicções. Se isto implica em trocar
um pouco do idealismo por um tanto de ceticismo, teremos algum benefício na
maior tolerância, na melhor convivência, na aceitação do jogo democrático.
Dessa forma, estaremos, talvez, contribuindo para um mundo mais esclarecido,
mais tolerante. Teremos um pouco de paz.
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