4 de outubro de 2012

O eremita e o doutor


O profundo silêncio do vetusto claustro era interrompido a horas certas pelo coro da santa missa - a elevar as vozes do cantochão envolto nas nuvens do turíbulo até ás abóbodas do antigo templo, senão até os céus - ou, após a primeira parte das refeições do meio dia e das vésperas, pela leitura por um dos monges, seguida por debate do tema que acabara de ser lido. Fora disto, o tempo todo se fazia ouvir o mais profundo silêncio a convidar à reflexão e à oração.

Há muito, o velho monge se habituara àquela absoluta falta de sons interrompida pelo cantar da cotovia e pelo farfalhar das árvores balançadas pela brisa constante no alto da montanha. Mas este era como o marulhar das praias, ao qual rapidamente se acostuma, que acalma e conduz à introspecção, a recolhimento e à prece.

No entanto, as discussões ao final das refeições lhe davam momentos de real prazer, seu cérebro disparava em busca de soluções e de argumentos. Não lhe movia a glória efêmera do silogismo perfeito com que derrotava algum desavisado que lhe contestasse ideia original ou explicação de obscuro tema. Sua modéstia o impedia de humilhar adversários ou de extrair qualquer gozo nisto. Mas o debate era estimulante, o exercício da dialética colocava em cheque suas opiniões, faziam-no revê-las ou lhe consolidava a convicção.

O abade, no entanto, o observava com olhos e ouvidos zelosos da virtude, e notava o brilho em seus olhos enquanto ouvia atentamente a leitura, preparando-se para a contenda que viria a seguir. O abade, certamente, não permitiria que aqueles rompantes, que lhe pareciam mera vaidade, prosseguissem sem reparo. Ordenou ao confessor que aconselhasse o velho monge a refletir sobre o pecado da arrogância intelectual e o induzisse a se retirar a algum eremitério e lá ficasse pelo tempo necessário a se corrigir de modo definitivo.

Foi assim e por isto que o velho monge passou dez anos a pão e água em seu retiro no deserto, sem livros, em completo jejum intelectual, recolhido apenas às orações, a refletir sobre a fatuidade do extenso saber pelo mero prazer do conhecer, sem consequências praticas no caminho da virtude e da salvação.

Quando julgou que se submetera à necessária humildade, retornou à abadia e se reintroduziu na rotina monasterial onde encontrou, recém chegado de cursos e aulas nas universidades de Bolonha, Paris, Oxford e Modena, o brilhante jovem monge que fora seu pupilo anos atrás, agora doutor e palestrante convidado pelo abade.

A alegria do reencontro logo se transformou em ansiosa expectativa de deliciosas e estimulantes conversas sobre temas adormecidos em sua mente de eremita, agora reavivadas pela presença de tão grandiosa inteligência e cultura. Como seria empolgante o enfrentamento daquela mente poderosa, quanto a aprender, a conferir a exatidão da lógica, a validar hipóteses por longo tempo adormecidas no silêncio do deserto.

O jovem monge proferiu sua palestra, contrapondo abordagens do mesmo tema por Agostinho e Aquino, seguida de comentários do abade. Tão pronto este concluiu seu pensamento, o velho monge, que desde seu retorno do eremitério se mantivera silencioso nos debates do refeitório, incontidamente, se lançou a discorrer argumentos contrários aos do jovem conferencista, e com tanto entusiasmo e ênfase que os demais monges se recolheram a recatada mudez, o abade o fitava de olhos esbugalhados e o jovem doutor, impassível, se limitava a arquear a sobrancelha direita.

O velho monge calou-se de repente, espantado com o próprio ardor e com o silencio sepulcral que o cercava. Entrelaçou os dedos junto ao peito, inclinou a cabeça e assim se manteve até que o abade proferisse a oração de encerramento da refeição. Ergueu-se com os demais e os acompanhou pelas arcadas que conduziam às celas, ajoelhou-se diante do leito e ali permaneceu por horas, em profunda contrição.

No dia seguinte, ao faltar à missa matinal, o velho monge foi encontrado morto, ainda ajoelhado no chão, meio corpo atirado sobre o modesto catre. Vergonha e embaraço liquidaram a ânsia por saber, o desejo do debate e, sem isto, a vida o abandonara.

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