O profundo silêncio do
vetusto claustro era interrompido a horas certas pelo coro da santa missa - a
elevar as vozes do cantochão envolto nas nuvens do turíbulo até ás abóbodas do
antigo templo, senão até os céus - ou, após a primeira parte das refeições do
meio dia e das vésperas, pela leitura por um dos monges, seguida por debate do
tema que acabara de ser lido. Fora disto, o tempo todo se fazia ouvir o mais
profundo silêncio a convidar à reflexão e à oração.
Há muito, o velho monge
se habituara àquela absoluta falta de sons interrompida pelo cantar da cotovia
e pelo farfalhar das árvores balançadas pela brisa constante no alto da
montanha. Mas este era como o marulhar das praias, ao qual rapidamente se
acostuma, que acalma e conduz à introspecção, a recolhimento e à prece.
No entanto, as
discussões ao final das refeições lhe davam momentos de real prazer, seu
cérebro disparava em busca de soluções e de argumentos. Não lhe movia a glória
efêmera do silogismo perfeito com que derrotava algum desavisado que lhe contestasse
ideia original ou explicação de obscuro tema. Sua modéstia o impedia de
humilhar adversários ou de extrair qualquer gozo nisto. Mas o debate era
estimulante, o exercício da dialética colocava em cheque suas opiniões,
faziam-no revê-las ou lhe consolidava a convicção.
O abade, no entanto, o
observava com olhos e ouvidos zelosos da virtude, e notava o brilho em seus
olhos enquanto ouvia atentamente a leitura, preparando-se para a contenda que
viria a seguir. O abade, certamente, não permitiria que aqueles rompantes, que
lhe pareciam mera vaidade, prosseguissem sem reparo. Ordenou ao confessor que
aconselhasse o velho monge a refletir sobre o pecado da arrogância intelectual
e o induzisse a se retirar a algum eremitério e lá ficasse pelo tempo
necessário a se corrigir de modo definitivo.
Foi assim e por isto que
o velho monge passou dez anos a pão e água em seu retiro no deserto, sem
livros, em completo jejum intelectual, recolhido apenas às orações, a refletir
sobre a fatuidade do extenso saber pelo mero prazer do conhecer, sem
consequências praticas no caminho da virtude e da salvação.
Quando julgou que se
submetera à necessária humildade, retornou à abadia e se reintroduziu na rotina
monasterial onde encontrou, recém chegado de cursos e aulas nas universidades
de Bolonha, Paris, Oxford e Modena, o brilhante jovem monge que fora seu pupilo
anos atrás, agora doutor e palestrante convidado pelo abade.
A alegria do reencontro
logo se transformou em ansiosa expectativa de deliciosas e estimulantes
conversas sobre temas adormecidos em sua mente de eremita, agora reavivadas
pela presença de tão grandiosa inteligência e cultura. Como seria empolgante o
enfrentamento daquela mente poderosa, quanto a aprender, a conferir a exatidão
da lógica, a validar hipóteses por longo tempo adormecidas no silêncio do deserto.
O jovem monge proferiu
sua palestra, contrapondo abordagens do mesmo tema por Agostinho e Aquino,
seguida de comentários do abade. Tão pronto este concluiu seu pensamento, o
velho monge, que desde seu retorno do eremitério se mantivera silencioso nos
debates do refeitório, incontidamente, se lançou a discorrer argumentos
contrários aos do jovem conferencista, e com tanto entusiasmo e ênfase que os
demais monges se recolheram a recatada mudez, o abade o fitava de olhos
esbugalhados e o jovem doutor, impassível, se limitava a arquear a sobrancelha
direita.
O velho monge calou-se de
repente, espantado com o próprio ardor e com o silencio sepulcral que o
cercava. Entrelaçou os dedos junto ao peito, inclinou a cabeça e assim se
manteve até que o abade proferisse a oração de encerramento da refeição.
Ergueu-se com os demais e os acompanhou pelas arcadas que conduziam às celas,
ajoelhou-se diante do leito e ali permaneceu por horas, em profunda contrição.
No dia seguinte, ao
faltar à missa matinal, o velho monge foi encontrado morto, ainda ajoelhado no
chão, meio corpo atirado sobre o modesto catre. Vergonha e embaraço liquidaram a
ânsia por saber, o desejo do debate e, sem isto, a vida o abandonara.
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