Sebastiao Imbiriba
Santarém
do Tapajós, 14/08/1997
É madrugada na
cidade fantasma. As longas e largas avenidas, desoladas e desertas, daquela
Brasília cruel, abrigam apenas os pequenos redemoinhos de pó vermelho que a
brisa morna levanta aqui e acolá.
Pataxó da Bahia |
Vejo um índio
de meia idade. Foi à capital em missão de sua tribo. Está hospedado em pequeno
hotel, pagou adiantado e preencheu regularmente sua ficha. Mas, apenas por ser
diferente, por estar vestido como índio que é, não lhe abrem a porta na
madrugada. Humilhado, triste, desconsolado, desorientado, sai a perambular sem
rumo, sem ter onde ficar, onde deitar seu cansaço, dormir um pouco, repousar
para a luta do dia seguinte.
Vejo rapazes
bonitos, saudáveis, bem vestidos, filhos de famílias de classe média, de altos
funcionários, bem encaminhados, bem relacionados, cheios de expectativas
perfeitamente realizáveis, alegres com a vida e contentes consigo mesmos. Vejo
a exuberância da juventude em sua plena forma. É uma alegria vê-los assim tão
joviais, expansivos, brincalhões a circular de automóvel pelas ruas desertas.
Que procuram
eles? Uma menina desavisada a ser estuprada? Um travesti solitário a ser
espancado? Um cachorro ou gato a ser atropelado? O que se passa na cabeça
deles? Por certo, não pretendem ir à igreja a essa hora. Procuram diversão,
algo que os tire da monotonia de ser feliz.
Então avistam
o índio. Sem forças, deitara-se na calçada de um ponto de ônibus e dormira.
Está ali, só, à mercê de qualquer intenção macabra. Pensamentos macabros é o
que ocorre na cabeça dos belos jovens. O que fazer, perguntam-se. Silêncio. Não
o despertem, deixem que ali fique até que estejam preparados. Partem
quietamente em busca de combustível.
Voltam pouco
depois. É apenas um mendigo, um candango pé rapado, talvez até um índio.
Certamente dará bela fogueira. Será bonito ver a tocha humana levantar-se e
perambular agitando os braços. Nem vai gritar. A primeira golfada de ar lhe
queimará as cordas vocais. Maravilhoso espetáculo. Uma celebração.
Num instante,
encharcam de álcool o infeliz. Antes que o índio desperte assustado, afastam-se
dois passos e lhe jogam fósforos acesos. A chama azul soa surda em pequena
explosão. O índio nem consegue levantar-se. Fica ali, no chão, agitando-se
freneticamente. As labaredas logo tornam-se amarelas ao consumir a pele e
queimar a gordura. O cheiro ativo de carne humana assada chega às narinas
fidalgas. Os jovens gozam a sensação de poder absoluto, o poder de vida e
morte. Gozam a visão da morte, o cheiro da morte. É o prazer supremo. Então,
calmamente, entram no carro e partem. Vão em silêncio, felizes, realizados,
comungando a expiação da vítima ao deus do horror, da estupidez e do absurdo.
As chamas
queimam músculos e tendões. O índio não consegue mais se mover. Apenas agita-se
nervosamente no sofrimento atroz. O corpo todo queimado. Os pulmões queimados.
Os olhos, as narinas, o rosto, tudo queimado. De nada adianta o socorro. O
sofrimento continua durante a longa agonia que o corpo rijo e forte estende por
mais tempo.
A sociedade
estremece. A TV notícia, o jornal comenta, a revista analisa, o político
discursa. Um diz uma coisa, outro diz outra. É mais um fato macabro a ser
comentado em nosso cotidiano. Nada que tenha consequências. Nada que seja
consistente.
Adeus Pataxó
anônimo, celebridade na agonia. A sociedade faz o que pode para limpar a
consciência e, aliviada, chora por ti meia lágrima.
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