Esta
crônica foi escrita para marcar a data de 25 de julho de 2006 quando se
completaram cinquenta anos de meu casamento com Nancy.
Eu a republico hoje ao completar sessenta
e três anos de casados.
Num ensolarado domingo
dos últimos dias de outubro de 1951, meu irmão Antonio e eu, na lancha que meu
pai trouxe de Fernando
de Noronha , denominada Eunice, saímos a reconhecer o belo rio Tapajós cujas
águas nos eram completamente desconhecidas. Embora nascido em Santarém e
banhado com águas trazidas em cântaros das margens do rio azul, fui daqui
levado antes que completasse o primeiro ano de vida. As águas do imenso rio nos
encantavam e navegávamos em ziguezague pelo espelho azul gozando as delícias do
passeio, felizes por não estarmos enfrentando as imensas ondas do mar de
Noronha.
A lancha fora
construída exatamente para enfrentar ondas oceânicas e seu casco, abaulado como
meia-banda de cacau, empurrava água para os lados levantando marolas tão mais
altas quanto mais acelerávamos seu potente motor. Quando passávamos rente à
praia, no trecho que se estende de onde hoje existe uma quadra de basquete até
o Mascotinho, quase fizemos alagar uma canoa movida por motor de popa, pilotada
pelo Abel que na época era empregado do Ninito Veloso e hoje ainda trabalha na
firma do Paulo Correa. A canoa estava cheia de crianças pequenas, filhos de
Pedro e Geny, que vieram de Belém passar férias e aproveitavam aquela bela
manhã para um passeio tranquilo acompanhadas da tia, uma jovem apenas pouco
mais velha que elas cujo nome vim a saber pouco depois, Nancy. As crianças choravam
desesperadamente, com
medo do naufrágio , Abel nos lançava olhares furiosos e Nancy
gritava alucinadamente ordenando que nos afastássemos.
Antes que o desastre
acontecesse, o bravo piloto conseguiu embicar a canoa na praia, diante da casa do Ninito , no canto
da praça São Sebastião, salvando a todos dos perigos que dois desatinados rapazes
ofereciam à navegação fluvial. Antonio e eu poitamos a lancha diante de onde é
hoje a sede do PT. Fomos até a casa ao lado, que pertencera a Alarico Barata e
onde esperávamos o fim das reformas de nossa residência na praça defronte da
Usina de Luz.
Pegamos nosso enorme
cachorro Tico, também trazido de Noronha e nos dirigimos à praia onde estavam
Nancy e as crianças com a intenção de dizer que não fora nossa intenção
assustar os pequenos, nem a ela. Queríamos estabelecer relações cordiais, mas o
pequeno Biriba, cachorrinho de estimação de Nancy, mais atrevido do que feroz,
ofereceu ao Tico uma sessão de latidos que ainda me ferem os ouvidos, o que só
fez irritar ainda mais a bela jovem e atemorizar novamente as crianças. Realmente,
não era nosso dia de relações sociais.
Tivemos, meu irmão e
eu, de afastar o Tico. Essa foi a segunda ordem que Nancy me deu em menos de
uma hora e até hoje continuo obedecendo, mas ela estava tão aborrecida por
causa da aflição das crianças que nosso relacionamento não passou daí. Afilhada
de dona Ciloca e de Paulo
Rodrigues dos Santos, Nancy passava diante de nossa casa
sempre que lhes ia tomar a benção, oportunidade que tínhamos de trocar olhares
interessados e indagadores.
Somente começamos a
namorar dois anos depois, quando começou a instalação da Empresa Telefônica de
Santarém e eu ajudava meu pai no empreendimento, primeiro tentando convencer as
pessoas a subscreverem cotas do capital, depois acompanhando os trabalhos dos
técnicos vindos do Rio de Janeiro com o propósito de assumir a manutenção da
central e da rede. Foi a discussão, testemunhada por Nancy, pela destruição dum
pedaço de cabo telefônico, depois da qual fui até a casa dela tomar um copo
d’água, que quebrou o gelo. Ela lecionava no Frei Ambrósio e meu irmão Miguel
era seu mais bem comportado aluno. Foi ele que lhe levou meu primeiro convite
para o cinema.
A partir daí passamos,
Nancy e eu, a ir juntos ao Cinema Olímpia e fazer par constante no Recreativo,
aos sábados à noite ao som da Euterpe, banda de seu Toscano e nas matinês
domingueiras ao som de vitrola. Até escolhemos um foxtrote, “Por tua causa”,
como nossa música, com a promessa de a dançarmos sempre que tocasse, mesmo que
estivéssemos brigados ou não fossemos mais namorados. Isto de fato aconteceu.
Fiquei com ciúmes por ela estar dançando com Nascimento, namorado da Zita. O
coitado apenas relatava as cartas que Zita lhe mandara de Portugal. Dançava com
Nancy para se sentir mais próximo da noiva, para matar um pouquinho as saudades.
Vi a cena e sai do Recreativo.
Já passara do Correio quando a Euterpe atacou “Por tua causa”. Voltei na mesma
pisada e, todo empertigado, cumpri a promessa da contradança. Mas não resisti à
ternura de Nancy e o ciúme tolo se apagou. Tive sorte. Quando ela me viu ir
embora também se dispôs a sair. Minha mãe lhe pediu que ficasse, aproveitasse o
baile, que eu logo voltaria. Sempre achei que fora o Loris Figueira quem
alertara o líder da banda. Só muitos anos depois Nancy me confessou que ela
mesma pedira ao Toscano que tocasse nossa música. Tempos românticos aqueles.
Foi no casamento de
Tereza Miléo, uma das mais brilhantes e melhor comentadas festas daquele ano de
mil novecentos e cinquenta e três, que decidi me casar com Nancy. Se ela me
aceitasse, é claro. Nancy era professora no Colégio Frei Ambrósio e Tereza sua
diretora. Além disto, meu pai era muito amigo da família Miléo. Nossa presença
era obrigatória. Estávamos, Nancy e eu, na sacada do belo sobrado em frente ao
trapiche, hoje substituído pelo tão protelado porto turístico, olhando o vazio
mal iluminado da Praça do Pescador, que então não existia, conversando e
apreciando os convidados que ainda chegavam. A noite era muito agradável, havia
música no interior do salão e eu estava apaixonado. Foi então que começamos a
falar de namoro firme, quase noivado, a traçar planos para o futuro comum, a
discutir o tamanho da família que gostaríamos de ter, a fazer juras de amor.
Mas eu não estava
muito feliz em Santarém. Minhas experiências como plantador de hortaliças e
verduras foram todas frustradas pela enormidade de plantas invasoras e insetos
vorazes que existe na Amazônia. Além disto, eu perdera toda minha riqueza, meia
centena de cabeças de gado em sociedades no Lago
Grande. Na cheia de cinquenta e três, enquanto eu levava o
gado de meu pai, dos Remédios, na várzea em frente à cidade, para a terra firme
do Lago da Praia, no Arapiúns, minhas rezes permaneciam alagadas no Lago Grande
e quando eu lá cheguei só pude embarcar a metade. A viagem foi a mais triste da
minha vida, observando milhares de rezes mortas boiando no Lago ou rio abaixo,
atirando fora do batelão as minhas que morriam. A novilha que sobreviveu foi
comida por onça. Assim, desisti da vida agrária e resolvi ir para o Rio de
Janeiro estudar e comecei a me preparar para isto. Senti que Nancy não
apreciara a ideia, mas, compreensiva e generosa, me incentivava assim mesmo.
Ao final da enchente,
numa viagem de volta para casa, dos Remédios, onde eu construíra maromba para
abrigar o gado na próxima cheia, nossa canoa à vela deslizava pelo o rio
levemente encrespado numa tarde ensolarada. Eu conversava com o caboclo que me
fora buscar quando a sonoridade dos sinos da matriz me chegou aos ouvidos. “É o
enterro do Xixito”, disse ele, “foi assassinado”. A notícia foi um choque.
Acontecimentos dessa natureza eram raros em Santarém, a tragédia envolvia pessoas
importantes e o morto era marido de Dulce, irmã de Nancy. O acontecimento
afetou profundamente a viúva de Xixito, ex-vereador Manoel Maria Macedo Gentil.
Ela foi com os filhos pequenos para o Rio e só retornou a Santarém uma única vez.
Cito o fato pela
grande importância que Dulce tem em nossa vida, minha, de Nancy e nossos filhos
e netos. Aos noventa e tantos anos, Mana Dulce continua saudável, com espírito
alerta, alegre, cheia de verve inteligente e fácil. Não é de admirar, Dona
Marcolina, mãe de onze filhos dos quais Nancy é a caçula - sou primogênito de
onze irmãos – foi matrona venerável da família Ayres, repleta de mulheres admiráveis:
ela própria e suas filhas, Edith que permaneceu solteira, Lídia Matos, Dulce
Gentil, Geny Pontes, Zilah Veloso, Mariinha Mendonça e Nancy, a caçula, minha
companheira. São mulheres cuja maior virtude e galardão é a enorme capacidade
de amar, de dar amor, de fazer com que os outros se sintam amados. Amor doado com a maior simplicidade, a mais
desprendida e comovente generosidade.
Terminada a montagem
da central telefônica, instalada no sobrado da esquina de Siqueira Campos com
Mártires, eu mesmo soldei os últimos fios e, antes da inauguração oficial, fiz
a primeira ligação telefônica automática jamais realizada em Santarém. Liguei
para a casa de Zilah e Ninito. Nancy mesma atendeu ao tão esperado toque.
Conversamos, comentamos a novidade inaugural e marcamos encontro para depois do
jantar. Naquele tempo, o bruxuleio que a sobrecarregada caldeira da Usina de
Luz conseguia colocar nas lâmpadas de Santarém ia só até às nove da noite.
Depois disso a cidade apagava e nenhuma moça de família namorava. Eu tentava
esticar a visita, mas a atenta Zilah mandava Ester e Júlia nos rodearem,
pigarreando, tossindo e, por último, avisando imperativamente que era hora de
dormir. Só me restava dar um último abraço, roubar um beijo sorrateiro e me
despedir.
Os festejos de Natal
daquele ano foram felizes e pesarosos ao mesmo tempo. Aproveitávamos ao máximo
os momentos de estarmos juntos, pressentindo e temendo as saudades que já
afloravam. A despedida foi triste e cheia de promessas. Promessas, ah...
promessas.
Três anos depois, em
agradável manhã de domingo, quando já havia algum tempo que retornáramos da
missa, tocaram a campainha de nosso conjugado na Praia de Botafogo. Fui à porta
atender e tive a agradabilíssima surpresa de ver diante de mim a figura
simpática e risonha de Frei Prudêncio. Ele estava de passagem pelo Rio e nos
fazia o agrado da visita. O frade era, de longa data, amigo de nossas famílias,
das quais fizera batizados, primeiras-comunhões e uniões. Recebemos o amigo,
confessor e conselheiro com muita alegria. Frei Prudêncio oficiara nosso
casamento, agora, brincava com nossa filha Bia em seu colo.
Em julho de 1956,
aproveitei a oportunidade de minhas primeiras férias no emprego que obtivera,
logo ao chegar ao Rio, recomendado que fora à empresa fornecedora do sistema
telefônico de Santarém e voltei ansioso por garantir que Nancy e eu viveríamos
juntos para sempre. A caçula, embora a mãe morasse no canto da rua dos Artistas
com a praça São Sebastião, desde criança fora criada pela irmã na casa do canto oposto, à
beira-rio, o que provocou a dúvida: Nancy morava com Zilah e meu pai não sabia
se deveria fazer o pedido ao marido desta, Ninito Veloso. Meus pais visitaram
Dona Marcolina e, em meu nome, pediram formalmente a mão de Nancy em casamento.
Tudo conforme a praxe que então se obedecia rigorosamente.
Proclamas dispensados,
no dia vinte e cinco de julho de mil novecentos e cinquenta e seis, na casa de
meus pais, ali no meio da praça Rodrigues dos Santos, Doutor Cacela oficiou o
casamento civil e Frei Prudêncio o religioso. A noiva, linda em seu vestido
branco, foi trazida por Ninito ao som da valsa nupcial briosamente tocada ao piano
por Dona Beatriz, minha mãe. Eu ardia em febre de quarenta graus e mal me punha
em pé. Dias depois embarcávamos para o Rio.
Tivemos uma série de
quatro meninas, depois as gêmeas, finalmente o menino. Quando Junior já estava
com pouco mais de dois anos, Nancy e eu, conversávamos na sacada de nosso
apartamento na Gávea, quando observamos uma senhora que descia a Marquês de São
Vicente com seu recém-nascido num carrinho. Nancy calou-se e acompanhou a
mulher e a criança com o olhar até que a curva da rua os escondesse. Por algum
tempo ficou pensativa e, quando a toquei no ombro, virou-se para mim e disse,
com um misto de aceitação e saudade na voz: “ano que vem não teremos mais bebê
em casa...”. Esta frase, naquele contexto, mostra perfeitamente a missão dessa
generosa mulher. Nancy veio ao mundo para ser esposa dedicada, mãe amorosa, avó
carinhosa, bisavó cheia de ternura. É isto que a faz ser o que é. Nancy cuida.
Nancy ama. Nancy acarinha. Sua missão é amar.
Mas Nancy é firme. É
firme no caráter, firme na fé, firme nas convicções, firme na ética e na moral,
firme em perseguir o que quer. Essas virtudes se aliam às muitas outras que
possui e fazem dela pessoa excepcional. Ela é responsável por estarmos juntos e
bem, ela quis isto e não permitiu que os tortuosos caminhos da vida nos
afastassem desse objetivo. Porque ela mesma me declarou que sua ambição de vida
era ficar bem velhinha junto comigo para cuidar de mim, para que cuidássemos um
do outro, para que nos amássemos eternamente.
União de cinquenta
anos, bodas de ouro, é extraordinária benção divina. Muito poucos são os
privilegiados por esse tesouro de bênçãos juntas e interligadas. Primeiro é o
dom da vida, longa o suficiente para atingir esse estágio. Outra benção é o
amor que une e envolve o casal de modo irreversível. Depois, os dons da
tolerância, da apreciação da diferença, da aceitação do contraditório. O dom do
perdão. O dom da capacidade de influenciar para retificar e aperfeiçoar a vida
do companheiro. Finalmente, a benção de que sejam dois os abençoados.
Além disto, há a
benção do destino, da sorte, dos acontecimentos fortuitos, aleatórios, imponderáveis
e imprevisíveis que nos forçam os passos. Quando Nancy e eu decidimos que não
pertencíamos aonde morávamos, que deveríamos retornar a Santarém, sentimento
atávico nos guiou para o lugar ao qual pertencemos. É aqui na Terra da Felicidade,
onde podemos ser quem somos, que retomamos o namoro antigo, refizemos o casamento
de nossos destinos e sublimamos o amor original. É aqui que nos amamos.
E se isto parece ao
amado leitor alguma deslavada e pública declaração de amor, esteja certo de que
é isto mesmo, a mais desastrada e incompetente, porém a mais profunda, sincera
e fervorosa declaração de amor.
Um comentário:
A mais linda e perfeita declaração de amor, papai!
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