30 de agosto de 2016

Realpolitik e Dilma



(Postado momentos antes da votação do impeachment)
A estas alturas não será mais possível devolver o poder a Dilma, mesmo que ela fosse inocente.
Seria um contrassenso, um desserviço ao país o Senado entregar o poder a uma pessoa totalmente incapaz de articular politicamente, de obter consenso sobre um programa de trabalho, qualquer que seja, para retirar o país do atoleiro em que se encontra.
Dilma não dialoga com trabalhadores, não dialoga com empresários e não dialoga com políticos.
Mesmo que Dilma desejasse seguir o mesmo programa de Henrique Meirelles, mesmo que o mantivesse com toda sua equipe no Ministério da Fazenda, a desconfiança do mercado persistiria, tal como aconteceu com Joaquim Levi, e ela não conseguiria obter o clima psicológico necessário à recuperação da confiança e do ânimo do mercado a reinvestir nos projetos paralisados exatamente pela presença de Dilma, seus métodos administrativos e de ideário econômico.
Reintegrar Dilma no poder seria piorar a confusão política e a desorganização da economia, com seríssimas consequências para o povo brasileiro, piora da recessão, da inflação e da desconfiança do mercado na recuperação da economia nacional.
O Senado tem a responsabilidade de evitar o pior mal que seria ter Dilma como presidente e Temer como vice.
O menos pior para o Brasil é o afastamento de Dilma. A qualquer custo. Isto é realpolitik.
Esta e' uma visão realista de um dado momento econômico em um dado contexto político, sem considerações ideológicas. Antes das eleições de outubro de 2014, eu já previa e disse que Dilma não tinha as características políticas necessárias para conduzir o país. Comparando Dilma, Marina e Aécio este me parecia ser o mais aparelhado pessoalmente e com maior trânsito político entre os três, portanto o mais indicado. A realidade dos fatos comprova minha previsão.
Abordei este tema – impeachment de Dilma - como um exemplo de realpolitik a qual abstrai as questões legais e éticas para se concentrar nas consequências dos atos e escolher o mais produtivo ou menos danoso.
Neste sentido, visando apenas o bem do Brasil, neste momento e nestas circunstâncias, pergunto: qual a melhor ou menos pior das duas opções do Senado?
Parece-me que devolver o poder a Dilma seria a pior opção.
As pessoas que se recusam a seguir pensamentos lógicos, que desqualificam os que tentam raciocinar, que se entregam ás suas paixões e preconceitos, se tornam incapazes de contribuir para o bem do país.
A expressão realpolitik foi criada no século XIX pelo alemão von Rochau referindo-se à política de Bismarck que usava procedimentos analisados por Machiavelli para manter a paz e a estrutura de poder na Europa em benefício da Prússia e, por consequência, a criação da Alemanha.
O conceito de realpolitik foi revivido pelo então ministro de relações exteriores da Alemanha Ocidental, depois primeiro-ministro, Willi Brandt, com sua Ostpolitik de reaproximação com a Alemanha Oriental.
Outros exemplos de realpolitik são o de Nixon e Kissinger ao buscarem reatamento de relações diplomáticas dos Estados Unidos com a China e, agora os de Obama e Raul Castro ao reatarem relações diplomáticas entre Estados Unidos e Cuba. Também realpolitik foi a aceitação de sua candidatura à presidência por Tancredo Neves, em eleição indireta, como meio de obter imediata redemocratização do país.
Realpolitik é buscar o mais útil para si ou para o país, em determinado momento histórico, independentemente de posições ideológicas, e mesmo de suportáveis prejuízos momentâneos, em troca de ponderáveis benefícios futuros.
Para a análise realista de um momento político, não importa como e porque se chegou a essa situação, não importa o passado, não importa a culpa de quem quer que seja, as únicas que importam são as consequências futuras das decisões a serem tomadas.
É por isso que, neste momento, tanto faz o que Eduardo Cunha fez ou deixou de fazer, se Dilma é ou não culpada, se cometeu ou não qualquer crime. Neste momento o que cabe indagar é o que ocorrerá se Dilma e Temer continuarem a ser, respectivamente, presidente e vice-presidente, como ambos entre si e estes, individualmente ou em conjunto, interagirão com os meios trabalhistas, empresariais e políticos para obter consenso sobre uma agenda eficaz para reerguer o Brasil da profunda crise econômica, social e política em que está afogado.
Os senadores, aos quais cabe tomar essa gravíssima decisão, devem refletir sobre as consequências de seus atos, e agir coerentemente com o melhor para nosso país.

27 de julho de 2016

MEU AMIGO TICO


Esta crônica foi publicada em julho de 2006 no jornal O Estado do Tapajós em comemoração aos cinquenta anos de casamento de Nancy e Sebastião, e republicado agora.
Quando criança, eu preferia gatos. Não me chegava muito aos cães. Gatos, sim. Alguns que tive dormiam comigo na cama mesmo sob veementes protestos de minha mãe. Eles se enroscavam em meus tornozelos, esfregavam o corpo todo, do focinho à cauda, em minhas pernas, ronronavam satisfeitos e se acomodavam tranquilamente em meu colo sempre que me acomodava para ler, coisa de que sempre gostei, desde muito cedo. Quando criança e mesmo depois, já rapaz, preferia os livros às brincadeiras.
Foi apenas quando conheci Fernando de Noronha que as coisas começaram a mudar. A ilha não possuía qualquer facilidade de ensino. Assim,  minha mãe foi obrigada a fundar uma escola primária que dirigiu durante todo os vários anos em que meu pai ali serviu na dupla função de governador e comandante da guarnição militar. O arquipélago era, então, Território Federal. Meus irmãos menores, em idade escolar, foram todos matriculados naquele recém criado estabelecimento. No entanto, quando meu pai foi transferido para o novo posto, estava eu no primeiro ano do ginásio no Colégio Pedro II do Rio de Janeiro e tive que ser hospedado em casa de amigos até o final do ano letivo. Não havia como estudar no arquipélago. Para ficar mais perto da família, fui internado no colégio dos  jesuítas do Recife. A cada final de semestre letivo, ia eu de férias para Noronha.
Gostar de livros é uma coisa, mas ser trancado com eles, meses a fio, sob supervisão de severos bedéis, é outra muito diferente. Por isto, quando me vi solto na selvagem natureza daquelas ilhas, tomei-as de assalto numa roda-viva de correr, nadar, montar, pescar, navegar de lancha, escalar penhascos e picos, mergulhar e praticar todas a loucuras esportivas que meus irmãos e eu inventássemos e que durava exatamente o período das férias, um mês no meio do ano, três no final.
Meus irmãos eram meus companheiros, evidentemente. Um deles apareceu, certa vez, com um filhote de cão noronhez, raça que se formou por seleção natural no isolamento da ilha. Era branco com manchas pretas. O noronhez, se é que ainda existe, após tantos anos sem ter quem cuide da raça, que aliás nunca teve, lembra um pouco o corpo do dálmata, mas é mais forte, mais encorpado, focinho mais grosso e tem variedade de cores.
Demos a ele o nome de Tico. Que cão. Corajoso, ágil, companheiro. Subia penhascos, com alguma ajuda, em certas passagens, mas subia, e nos acompanhava pelos escolhos das cabeceiras das praias ou os que aparecem na maré baixa. Seguia-nos por ali e metia o focinho dentro d’água tentando abocanhar algum peixe que ficasse retido  no refluxo das ondas. Uma vez quase foi abocanhado por uma moreia. Livrou-se a tempo, saltando de lado e, em seguida, contra-atacando, sem resultado. Mas, uma vez, segurou um pequeno polvo até que o livrássemos do apuro já que o molusco se agarrara às pedras num verdadeiro cabo de guerra. Na época, Noronha tinha pequenos rebanhos de cabras, vacas e cavalos e Tico adorava nos acompanhar nas cavalgadas desabridas para laçar potros xucros e trazê-los para serem domados.
Tomei-me de completa amizade por Tico e, em decorrência, abandonei os felinos. Adotei definitivamente os cães como meus preferidos. Quando nos mudamos para o Recife, Tico nos acompanhou no avião e, finalmente foi de navio conosco para Santarém.
Em nosso primeiro domingo após chegarmos a Santarém, meus irmãos e eu saímos na Eunice, uma lancha com o nome de minha irmã, em nossa estréia em passeios pelo encontro das águas do Tapajós com as do Amazonas. A Eunice era um barco marolento. Quando passamos por uma canoa movida a motor de popa, cheia de crianças, as marolas a fizeram dar alguns pinotes. Foi o suficiente para que uma morena, linda como jamais vi outra igual, se enchesse de ira e vituperasse contra nossa imprudência. Além do mais, Tico nos acompanhava, com as patas dianteiras sobre a amurada e um olhar altaneiro sobre a cena. Um cãozinho preto, na canoa, latia, mais furiosamente ainda, contra Tico. Eu achava tudo uma graça. A morena, muito ao contrário. Contrariada, mandou que a canoa embicasse na areia e parou o passeio. Como disse, a morena era linda e seu ar imperativo me impressionou.
Paramos, também, e saímos a passear na praia em companhia de nosso lindo e enorme cão. Ao passarmos pelas mesmas crianças que estavam, há pouco na canoa, uma delas, Ieda, como vim depois a saber, sobrinha da bela morena, se atemorizou com o cão e começou a choramingar. A tia, linda em sua irritação, novamente, vituperou contra mim. Tentei me aproximar, mas fui impedido. Só quando meu irmão afastou o Tico é que pude trocar algumas palavras com a morena.
Poucos anos depois, eu já morava no Rio de Janeiro, recebi telegrama de meu pai pedindo que lhe enviasse vacinas anti-tetânica e anti-rábica. Um irmão meu havia sido mordido por cão raivoso. Saí em busca dos remédios,  que encontrei, altas horas da noite, após bater de porta em porta a cidade toda, no hospital Antônio Pedro de Niterói. Ainda tive que pedir, implorar, brigar, que era caso de vida ou morte. Parti para o aeroporto do Galeão onde, finalmente, encontrei um tripulante com destino a Manaus, com escala em Santarém, que aceitou levar as vacinas.
O cão era o Tico e meu irmão o matou. Perguntei-lhe como tivera coragem e ele respondeu que se estivesse ameaçado de morte e tendo que tomar quarenta injeções na barriga eu também faria o mesmo. Não tenho dúvidas que sim, mas ainda tremo ao pensar nisto. Tico, firmemente amarrado, recebeu uma bala na nuca. Apesar da raiva, espumando e ganindo, ainda balançou o rabo quando meu irmão se aproximou com a arma.
Depois de Tico, tive cães, mas nunca lhes dediquei tanta amizade. Entretanto, como disse e repito, a morena era linda e seu ar imperativo me impressionou. É por isso que me casei com ela e estamos juntos a quatro décadas. Há quarenta anos ela vitupera contra mim. Eu acho tudo engraçado, porque temos muitos filhos e muitos netos. Tudo graças ao Tico.  

12 de julho de 2016

Objetividade e Paz


Originalmente publicado em Jornal de Santarém 02/11/2001
Há alguns anos, em acalorados debates sobre temas políticos, minhas amadas Thereza Lúcia e Luciana, filha e neta, respectivamente, me encurralaram com o ardor da juventude e idealismo apoiado em enormes conhecimentos nas áreas da literatura, filosofia, sociologia, política, etc., de onde extraíram petardos que acachaparam minha pobre ignorância. Tal veemência me pareceu, por vezes, próxima do dogmatismo intransigente e fiquei a ponderar se eu próprio não poderia estar assumindo posição radical, inflexível, xiita. Recordando os fatos, lembrei-me do esquema que aqui reproduzo.


A curva a cima, reproduzida de The Act of Creation, by Arthur Koestler, Arkana, London, 1984, pg. 332, posiciona diversas áreas do conhecimento segundo os respectivos graus de objetividade. Quanto maior a objetividade de uma matéria, maior sua verificabilidade. Isto é, melhor pode ela ser comprovada por métodos matemáticos e, portanto, maior a certeza. Por outro lado, quanto menor a objetividade, maior a componente emocional, maior a dificuldade em exprimi-la por meio de equações e, portanto, maior a incerteza. As ciências denominadas exatas são as de maior grau de objetividade, verificabilidade e certeza. Arthur Koestler discorre sobre o tema com grande precisão lógica, profundidade científica e beleza literária.

Muitas vezes eu me apanho sendo mais incisivo e mais dogmático do que o dever de cortesia me permite. Eu gostaria de ser mais isento, mais equânime, mais objetivo e, em consequência, mais justo.

Por isso, fiz para mim mesmo um jogo que volto a praticar sempre que o remorso me apanha. Na tentativa de ganhar um pouco mais de certeza e clareza nos meus pensamentos, tento acomodar, na curva acima, conforme os respectivos graus de objetividade, alguns documentos, personalidades,  ramos do conhecimento, e atividades da seguinte lista: Agricultura, Artigos que Leandro Konder e Roberto Campos, Comércio, Constituição da República Federativa do Brasil, Constituição dos Estados Unidos da América, Declaração da Independência dos EUA, Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa, Direito Civil, Direito Criminal, Economia-política, Finanças, Física, Indústria, Manifesto Comunista de Karl Max, Platão, Propaganda política na TV, Sócrates, Stephen W. Hawking.

A lista pode variar. O jogo consiste, por exemplo, em comparar o grau de certeza, a confiança que podemos depositar na informação contida em um exame de ressonância magnética computadorizada e a notícia de que a Cobra Grande de Óbidos acabou de engolir uma canoa de pescadores e todos os seus ocupantes. Há gente que acreditará mais nesta estória do que no exame médico. Qual o grau de objetividade encontrável em textos de Leandro Konder e de Roberto Campos?

A releitura dos documentos citados é parte do exercício. Acredito que, após este pequeno jogo, será possível que passemos a julgar certas posturas de pensamento e opinião, religião, ideologia, política - todas fortemente apaixonantes, prenhas de dogmatismo irascível - conforme a relatividade dessas matérias e seus conteúdos de subjetividade e emotividade.

Pessoas cultas, bem informadas, honestas, de boa-fé, oriundas de mesmos estratos étnicos e sociais, formadas nas mesmas universidades, exercendo as mesmas profissões, em tudo e por tudo semelhantes, podem ter posições ideológicas e preferências políticas antagônicas que defendem intransigentemente até à morte. Isto sem considerar ambições de poder quase sempre inseparáveis de motivações ideológicas.

A humanidade é atavicamente expansionista. Este é um assunto a ser analisado especificamente, em outro lugar, mas a história é rica de exemplos: medo-persas, greco-macedônios, romanos, mongóis, etc. No século XX, desgraçadamente, ideologias foram subordinadas por imperialismos atávicos: o socialismo nacionalista, pela necessidade de espaço vital da raça pura teutônica; o socialismo internacional, pelo expansionismo eslavo, herdeiro de Gengis Kahn. Ideologias usadas como pretexto, como pano de frente. O Corão e a Bíblia, da mesma forma, têm servido para escravizar povos sem conta. A cada momento, sob disfarces diversos, encontramos belas ideias a serviço de ambições pessoais e coletivas, do dogmatismo, do fanatismo. 

A humanidade em nada está sendo diferente neste limiar de novo século e novo milênio.
Espero que saibamos perceber isto e espero que saibamos retirar as paixões de nossas convicções. Se isto implica em trocar um pouco do idealismo por um tanto de ceticismo, teremos algum benefício na maior tolerância, na melhor convivência, na aceitação do jogo democrático. Dessa forma, estaremos, talvez, contribuindo para um mundo mais esclarecido, mais tolerante. Teremos um pouco de paz.

18 de fevereiro de 2016

A Saga da Família Dillon



Meus pais me batizaram com o nome de John Dillon, e nasci na cidade de Santarém do Tapajós, na confluência desse grande rio com o imenso Amazonas. Os Dillons têm origem remota na França, de onde o Conde De Lyon partiu com toda a família e as joias que pode arrebanhar, durante o Regime do Terror do famigerado Maximilien de Robespierre, que se seguiu à Revolução Francesa. Refugiou-se na Irlanda onde o heráldico nome De Lyon transformou-se no plebeu Dillon.


Mas a saga dos Dillons não terminaria na Irlanda, de onde fugiram da fome das batatas e ferocidade dos ingleses para prosperar como grandes plantadores de algodão na Carolina do Sul. Após a Guerra Civil, juntaram o pouco que restou da derrota para os Yankees em 1865 e, mais uma vez, junto com outros fazendeiros sulistas, migraram para o Brasil, onde compraram terras em Santarém do Tapajós, na Amazônia. 

Um dos descendentes desses Dillons migrados para a misteriosa Amazônia foi meu avô, Jack Jr., que levara vida cheia de aventuras. Antes de morrer, o avô me chamou ao seu leito e, circunspeto, colocou em minhas mãos o seu mais precioso bem, um talismã negro que ele possuíra por mais de setenta anos. "Jamais se desfaça deste muiraquitã. Prometa", murmurou ele. "Prometo", disse eu solenemente.


Conhecedor do caráter profundamente honesto de meu pai que, no entanto, tinha uma personalidade bastante alegre e ainda mais volúvel, incapaz de prosseguir seriamente com qualquer projeto um pouco mais longo, meu avô deixou para mim em testamento praticamente todos os seus bens, colocados em um trust, aos quais eu só teria acesso após completar os vinte e um anos.

Após o falecimento de meu avô, como era de se esperar, as coisas não foram bem com as finanças de meu pai e seu negócio de então, a oficina de marceneiro. Ele usava as preciosas madeiras de lei da Amazônia e produzia móveis de luxo para as famílias abastadas. Suas portas lavradas ainda podem ser vistas nos casarões elegantes.

O problema é que, no fim do século dezenove, os ingleses levaram sementes da seringueira para a Malásia e começaram a produzir borracha muito mais barata do que os seringais da Amazônia. A região toda empobreceu. No período entre as duas Grandes Guerras, grandes fortunas se arruinaram, e muitos milhares de seringueiros abandonaram as matas e se tornaram pedintes nas cidades.


Durante a Segunda Grande Guerra, houve um surto de prosperidade devido à ocupação dos seringais asiáticos pelos japoneses. Os Estados Unidos da América injetarem muito dinheiro para reerguer a produção dos seringais nativos. Após a guerra, apesar dos esforços do governo brasileiro para manter a produção, aos poucos, a concorrência do látex da Malásia derrubou os preços abaixo dos custos de produção dos seringais brasileiros. Tudo isso foi enfrentado por Jack Jr., meu avô, com toda competência e galhardia. Tanto assim que, se já começara rico, ficou mais rico ainda, não só com negócios de borracha, mas com todos os outros projetos que seu espírito empreendedor realizava continuamente.

Meu pai era outra coisa. Em outro relato tentarei explicar as razões de sua má sorte. O fato é que, mais uma vez, ficou sem clientela. Meus cinco irmãos, duas irmãs e eu tínhamos que ajudar na oficina de meu pai e na cozinha de minha mãe.

Assim, tive que enfrentar alguns obstáculos para estudar, formar-me engenheiro e iniciar uma profissão que não me satisfazia. Aliás, exercer alguma profissão é coisa que não está à altura de meu formidável talento, razão pela qual, já na faixa etária dos quarenta, prefiro continuar estudando.


É por isso que graças a sucessivas bolsas, obtive bacharelado também em economia e sociologia, prosseguindo na vida acadêmica até o doutorado em Harvard e o circuito internacional de cursos, conferências e seminários. Frequentemente, atuo como professor convidado nas mais importantes universidades. Não há lugar melhor para entreter relações com mulheres cultas, inteligentes e, por isso mesmo, excelentes parceiras, principalmente na cama. É vida muito agradável, e ainda me pagam pelo que mais gosto de fazer, palestrar, falar em público, principalmente sobre mim mesmo. Aliás, a única despesa que tive na vida acadêmica foi o ano que passei em Florença num curso de História da Arte. Mas essa já é outra história.


Como já disse, meu pai nunca foi um homem de muita sorte. Meu avô sim, e eu também. Já disse, e repito sempre, que detesto essas crendices populares. Meu brilhante intelecto rejeita qualquer coisa que não caiba em um silogismo perfeito. Mas o povo comenta, maliciosamente, como sempre, que a sorte de meu avô se devia à posse do miraculoso muiraquitã negro que hoje está em meu poder.

Ora, os simplórios atribuem poderes mágicos a qualquer muiraquitã, e mais ainda a esse, que é único e negro. Dizem que é ele a causa da incrível sorte e felicidade de meu avô, mais ainda a do padrinho dele, o ilustre barão do Solimões; e toda a desastrada vida de meu pai se deve à falta de um muiraquitã, mesmo que um simplesinho, desses que se encontram em alguns museus.


Bem, é fato que a sorte nunca bafejou meu pai, e que ele, também, jamais possuiu qualquer talismã, nem mesmo desses que ciganos, mães de santo e pajés oferecem enganosamente aos crédulos que os sustentam, muito menos um sagrado muiraquitã verdadeiro, dos verdes, garimpado no Lago da Lua pelas Icamiabas. A vida dele sempre foi muito difícil e as desgraças se abatiam sobre ele com maior frequência e intensidade do que os pingos das chuvas torrenciais que se derramam em tempestades sobre a Amazônia durante mais da metade do ano. Mas ele tinha espírito alegre e nunca se abatia, aceitava tudo com muita naturalidade. Era um otimista e sonhador.


Encarar o mundo com otimismo e confiança pode ser preciosa virtude ou maléfico defeito, dependendo da pessoa e das circunstâncias. Quando o final é feliz, tudo bem. Mas é necessário aguardar o final, e, para alguns, jamais acontece o “happy end”. Com meu genitor era assim.


Meu pai foi um típico menino nascido e criado em Santarém do Tapajós, nadava da prefeitura, onde hoje é o Centro Cultural João Fona, que chamamos de museu, até a Ponta Negra, que demarca a confluência do Tapajós com o Amazonas. 


Ponta Negra é o extremo oriental de extenso istmo que separa os dois grandes rios, desde o Lago Grande do Curuái, pelo lado do Amazonas e o rio Arapiúns, afluente do Tapajós. Com o passar dos anos e das cheias, a correnteza do Amazonas lavou e levou as terras dessa ponta, que antes chegava até diante da antiga prefeitura. Em seu lugar, mais ao centro do Amazonas, surgiu uma ilha de aluvião. Entre os dois pontos, há uma distância de mais de três quilômetros, no meio da qual as águas barrentas do Amazonas se encontram com o azul do Tapajós, mais esverdeado na seca, devido às algas, ou mais avermelhado na época das chuvas, cor da serapilheira inundada. Os meninos costumam nadar essa distância, ida e volta, por simples brincadeira. Coisa de ribeirinhos da Amazônia.


Além de nadar no Tapajós, adorava cavalgar e não se continha até a chegada das férias escolares, quando ia para as fazendas de gado de meu avô. Quando meu pai completou seis anos, o pai dele o presenteou com sela, bridão, botas, rebenque e o ensinou a montar. Isto é, montar ele sabia, mas não possuía a técnica de dominar o ginete e fazê-lo apartar e conduzir o gado e tudo mais que um verdadeiro vaqueiro deve saber. E, com seu jeito peculiar de conduzir as pessoas, gentilmente ensinou todos os segredos da arte de vaquejar ao menino. Além disso, seguindo a tradição dos Dillons na arte da equitação, ensinou-o a saltar obstáculos com elegância de verdadeiro cavaleiro e até o fez competir em torneios da Sociedade Hípica Brasileira. Infelizmente, como já disse, meu amado pai não perseverava em seus projetos e não pôde tornar-se o campeão que meu avô ambicionara.


Meu avô o levava às fazendas de várzea do Lago Grande e às de terra firme do Arapiúns, para onde o gado era conduzido nos períodos de cheias. Na vazante, a várzea se transformava em extensos campos de belo frescor verdejante, como imensas esmeraldas engastadas entre igapós e florestas. É emocionante ver o capim crescer quando as águas baixam; num dia estão deste tamanhinho, no outro já quase dobrou de tamanho. É a riqueza das terras de aluvião, da energia de um sol equatorial e da umidade constante. Ali, o gado cresce e engorda que é uma beleza. Ali, o menino disparava em correrias, para lá e para cá, montado no garanhão que o avô lhe dera para acompanhar os arreios e as botas.

Uma noite, o cavalo desapareceu. Quando meu pai, isto é, aquele menino de seis anos que no futuro seria meu pai, na manhã seguinte, ao raiar do sol, antes mesmo de tomar o desjejum, levou os arreios para selar o cavalo, não o encontrou no curral. A porteira estava fechada, as cercas intactas, nenhum vestígio de ataque de cobra ou onça. O vaqueiro que, por ordem expressa do fazendeiro, sempre acompanhava o menino, se benzeu. “É coisa do demo”, disse ele. 


Logo juntou gente. Uns diziam que fora Cobra-grande, outros que era coisa de Curupira. Houve até um que falou em boto, mas todos caçoaram dele, porque nunca ninguém viu nenhum boto montando cavalo por estas bandas, muito menos desaparecendo com ele. 
Aliás, nunca ninguém viu nem Cobra-grande, nem Curupira, mas todos acreditavam piamente nesses seres fabulosos. Não era justo caçoar do rapaz só porque ele acha que o boto levou o cavalo para o fundo do lago. O que fazer, a maldade das pessoas é assim mesmo, ainda mais numa roda de vaqueiros, onde novato só serve para estas coisas, ser alvo permanente de chacotas e brincadeiras maldosas.


O rapazinho ficou desolado. Meu avô mandou procurar em toda parte. Até despachou um empregado para falar com o delegado de polícia, apresentar queixa do desaparecimento, possivelmente roubo do cavalo e de umas reses que logo se verificou que também sumiram. 


Mas o pior não foi isto. Meu avô tinha que ir à Vila franca, na boca do Arapiúns, coisa relacionada com borracha, látex em tonéis de petróleo, que um comerciante conhecido por Chubico explorava na margem direita desse rio. O menino foi com ele e aproveitaram para subir até a cachoeira do Aruã. A viagem foi divertida e serviu para que esquecessem por algum tempo o sumiço do cavalo.

Desceram de canoa o Lago Grande até a Vila Socorro, de onde atravessaram campos de capim barba-de-bode e savana rala até o Lago da Praia, no Arapiúns. Ali os esperava um batelão à vela para os levar, rio acima, até a cachoeira onde meu avô pretendia, junto com outros fazendeiros e negociantes, construir uma usina hidroelétrica. Tinham o sonho de produzir energia para movimentar máquinas de beneficiamento de produtos daquela região, coisa que ficou apenas em uma pequena turbina, porque meu avô e seus sócios se cansaram da burocracia do governo e das leis restritivas ao progresso. 


Depois de mergulharem nas águas abaixo da cachoeira e visitarem a pequena casa da turbina, desceram o rio até a Vila Franca para tratar de negócios. Dali, atravessaram a grande baía formada pelo Tapajós, enfrentando ventos fortes e ondas de mais de três palmos, um grande perigo para barcos regionais de bordas rasas. O menino ficou deveras apavorado com o rugir do vento rasgando as velas, com o corcovear do batelão subindo e descendo as vagas, as ondas rebentando contra o costado e lançando água em cima dos passageiros. A criança se agarrava desesperadamente em meu avô, chorava e gritava de terror. Por mais que meu avô tentasse acalmá-lo, o menino ficava cada vez mais aterrorizado.


Quando chegaram à Santarém do Tapajós, numa viagem em barco à vela que durou quase duas semanas, mais uma triste notícia os esperava, a de que o galpão, ao lado da casa grande da fazenda do Lago Grande do Curuái, havia pegado fogo, e o incêndio destruíra tanto o prédio quanto tudo o que havia lá dentro, implementos, utensílios, arreios, rações, vacinas e remédios para o gado.

Meu avô e meu futuro pai seguiram imediatamente em uma lancha a vapor que pertencera à Amazon Cable, companhia telegráfica inglesa que explorava o cabo submerso que percorria todo o Amazonas desde os tempos áureos da riqueza da borracha. Era um belo barco de linhas suaves, esguio e muito veloz, cuja finalidade original era mover-se rapidamente em serviços de reparo nos cabos e estações telegráficas. Não se prestava para negócios de gado ou borracha, e meu avô o comprara em leilão, no fechamento da companhia, apenas para ter um veículo rápido para se locomover com presteza quando necessário e, além disto, porque queimava lenha que podia ser obtida em qualquer lugar da Amazônia, ao contrário do óleo diesel. A desvantagem é que exigia tripulação mais numerosa para alimentar as caldeiras. Mas era um barco muito elegante, lindo de se ver singrando as águas dos rios e agradável de ouvir sua máquina muito mais silenciosa do que os motores a explosão.


Chegaram à fazenda em menos de doze horas, subindo o rio, e, como haviam partido de madrugada, era ainda dia claro. Ficaram consternados com a desolação, tudo queimado. Por pouco o fogo não se propagara até a casa grande, graças aos vaqueiros que abriram um aceiro que não permitiu ao vento levar adiante as labaredas.


Apesar de estar tudo queimado, era possível identificar muitos objetos, a sela do fulano, o bridão do sicrano, mas não se encontrou nenhum vestígio do selim de meu pai, nem ao menos uma peça sequer de metal, uma argola ou estribo. Meu avô ficou possesso de raiva, mas manteve a compostura de sempre. Mandou que todos os vaqueiros e outros empregados formassem um círculo e os encarou, um por um, com aquele seu ar severo que fazia qualquer um baixar os olhos diante dele.


Depois de fazer o círculo completo, voltou ao novato, aquele que fizera gracejos a respeito de botos montados em cavalos. Mandou que se retirasse da fazenda imediatamente, que pegasse uma “montaria”, uma pequena canoa, da fazenda, e desaparecesse. Não queria encontrá-lo nunca mais.


A sela e os arreios foram encontrados, às margens da floresta, pelos cachorros, na caçada a uma suçuarana que andava comendo bezerros. Estavam bem abrigados por touceiras de capim, à espera de quem os viesse buscar. Não poderiam ser vistos, mas os cães lhes sentiram o cheiro e latiram em volta. O garanhão de meu futuro pai nunca mais foi encontrado. Talvez tivesse sido vendido a algum comerciante que o levaria para o Marajó, onde encontraria bom preço sem perguntas embaraçosas. Também nunca mais se teve notícia da “montaria” levada pelo peão, mas o corpo do rapaz foi encontrado, dias depois, em cima de uma ilha de capim flutuante, dessas arrancadas das margens do rio pela força do Amazonas, preso aos galhos do igapó na boca do Arapixuna, o furo que liga o grande rio ao Tapajós na época das cheias. A barriga do peão estava enorme e a cabeça partida ao meio por tremendo golpe de terçado.

Meu avô sempre negou que tivesse algo a ver com a morte do peão. Ele poderia matar se fosse o caso de defender a vida própria ou de terceiros, mas era sabido que seu caráter não permitiria que se envolvesse em assassinato. No entanto, as más línguas sempre lhe apontaram a responsabilidade, o que contribuía para que, além de ser muito respeitado, fosse também muito temido. Também nada foi provado, nem nada foi investigado, a última coisa desejada pelo delegado seria se indispor com meu avô. Um bilhete ao governador bastaria para que o policial fosse desterrado para local inabitável. O fato é que, se todos o respeitavam, passaram todos a temê-lo, e nunca mais ninguém se atreveu a roubar o que quer que fosse de suas propriedades, fazendas e plantações.


Aquela viagem, a perda do ginete, a aterrorizante tempestade no Tapajós, a visão do incêndio e, depois, a do peão com a cabeça decepada ao meio, tudo foi muito perturbador, e o menino jamais conseguiu se recuperar totalmente. Meu futuro pai ficou deprimido por várias semanas, e, somente quando a avó o levou a passear em Manaus, é que ele aos poucos se recuperou da primeira das que, depois, passaram a se denominar as crises dos seis anos de meu pai. Crises periódicas que ocorreram aos seis, doze, dezoito anos, e assim por diante. Não houve crise dos trinta e seis, mas, a essa altura ele já estava morto.


Meu avô jamais o perdoou. Não admitia que seu próprio filho, no seu entender de machista radical, comum naquela época, fosse um covarde que temesse umas ondinhas de nada do Tapajós ou que não encarasse a coisa mais infalível que existe, a morte. O relacionamento entre os dois foi sempre distante a partir de então. E, quando eu nasci, todo seu afeto e toda sua atenção foram centrados em mim.

Continua...
Em breve o livro será publicado.