Em maio de 1998, em carta a uma neta, fiz
algumas reflexões tão atuais hoje quanto a quinze anos atrás.
Minha
Querida Neta,
Sua
carta é uma alegria. Alegria de ser lembrado. Alegria de relembrar. Alegria de
reviver as lembranças, as imagens de tuas feições, os sons de tua voz, o tato
de teu abraço. As lembranças de teus assuntos, de teus interesses, de teu
trabalho, de teus estudos, de teus lazeres, de teus amores. Compartilhar teus
projetos, tuas concepções filosóficas. E, que prazer imenso, combater tuas ideologias ...
Por
falar em ideologia, estou convencido de que só servem para atrapalhar. O que
vou afirmar é um resumo de meu pensamento:
1)
temos que ser éticos em nossas ações e convicções;
2)
temos que ser tolerantes com as convicções alheias;
3)
o conjunto das prosperidades individuais torna toda a sociedade próspera e
temos que buscar nosso bem individual para atingir o bem comum;
4)
temos que ser flexíveis, práticos, pragmáticos para atingir esses objetivos.
A
ética nos coloca nos limites de nosso direito e nos faz respeitar o direito
alheio. A tolerância nos permite conviver e cooperar. A melhor forma de se
atingir o maior (melhor) bem geral é cada indivíduo ter liberdade para resolver
seus próprios assuntos, procurar seu próprio bem, buscar sua felicidade. O
pragmatismo nos permite resolver os problemas, que sempre existem, da
superposição de direitos.
A
sociedade é totalmente permeada de direitos antagônicos e conflitantes. A
civilização nos acostuma a dirimir ordeira e ordenadamente esses conflitos.
Dentro desses parâmetros, o Estado é fundamental, mas sua ação deve ser
extremamente limitada.
Durante
toda a história, o Estado tem sido opressor e instrumento de dominadores e
exploradores dos povos. É essa natureza de perversidade atávica que abomino.
Detesto o Estado por esse caráter malígno. Certamente, há funções que só
competem a um Estado democrático. No entanto, mesmo na Escandinávia, o Estado
tem seu lado intrometido e opressor.
Assim,
sou forçado a desejar um Estado pequeno, tão pequeno que não possa se esconder
por trás de uma burocracia corporativista, monstruosa, impessoal, impenetrável,
tão pequeno que possa ser democraticamente controlado. Do jeito como são as
coisas, considero bem-vindo tudo o que diminua o tamanho, o poder do Estado,
mesmo que às custas de hipotéticos ou reais prejuízos contábeis para o Erário
Público. O lucro, para a nação e para o indivíduo, advindo da diminuição dos
abusos dos marajás e mandarins, da diminuição da prepotência e da arrogância
dos senhores do poder, compensam plenamente qualquer perda contábil de
dinheiro, dinheiro que, de qualquer forma, jamais iria para o benefício do povo
mas para lucro dos poderosos.
Desculpe
a extensão do desabafo, mas você é uma jovem inteligente e me angustia a
sensação de que você não tem tido oportunidades de olhar o mundo sob a ótica da
liberdade, dos direito fundamentais e inalienáveis do ser humano. Me angustia a
sensação de que você seja capas de aceitar como coisa natural e louvável a
existência de governos totalitários e opressores, violadores dos direitos
humanos, sob a indesculpável alegação, para
mim irracional, de que são comunistas ou socialistas, de que trazem
algum benefício específico para o povo.
A
maioria dos grandes tiranos também proporcionou benefícios específicos ao povo.
Hitler foi louvado e amado por seu povo, assim como o foi Getúlio, assim como o
é Fidel e outros ditadores. Boa parte da população do Chile aceita Pinochet
como líder benévolo. Tentar justificar a agressão aos direitos humanos e ao
cerceamento indevido da liberdade é um desrespeito a tantos heróis que, ao
longo dos séculos, deram suas vidas pela liberdade.
Minha
visão do Homem deste fim de século, depois de milênios de injustiças e
massacres e genocídios, é a de que o indivíduo possui uma gradação no
imediatismo de suas necessidades vitais. Se lhe falta ar ou água, alimento ou
abrigo, afeto ou realização, dignidade ou liberdade, o ser humano estiola e
morre, física ou moralmente. Repare que o ar é uma necessidade fisiológica
básica, enquanto que a liberdade é uma necessidade da mais alta nobreza moral e
intelectual.
O
bruto não pode perceber o valor da liberdade. Para isso, é necessária uma visão
culta e humanística do mundo. O Mundo de hoje está atingindo, principalmente na
Europa e nas Américas, mas também em outras partes, essa percepção das
necessidades mais nobres.
Eu
vejo um Mundo que se aproxima nos próximos decênios, que eu não verei, mas você
sim, como um complexo de interesses que se entrechocam e que se resolvem
pacífica e ordeiramente sob a égide de leis universais que respeitem a essência
mais nobre do ser humano que são a sua dignidade como pessoa e a sua liberdade.
Esta
visão implica na existência de Estados democráticos, pluralistas e
especializados, melhor dizendo, contidos na administração da justiça e na
proteção dos direitos do indivíduo. É por isso que acredito no abrandamento
progressivo e continuado dos regimes totalitários e ditatoriais que ainda
perduram, mas que se transformarão em democracias no decorrer das próximas duas
décadas.
Quando
eu era criança, ouvia dizer que “o Mundo marcha para o comunismo”. Nunca
acreditei nisto. Entre os doze e catorze anos eu lera a História Universal do
Cesar Cantú, todos os 24 volumes da estante de meu pai. Mais tarde, freqüentava
a Biblioteca Nacional para ler Toynbee. Esses e outros historiadores e
biógrafos me mostraram um rumo de aperfeiçoamento moral e político da
Humanidade. Aperfeiçoamento a passos de milênios, no começo, de séculos, mais
recentemente e de décadas nos dias de hoje.
Creio
na aplicação da Segunda Lei da Termodinâmica, a que rege a entropia, também aos
fenômenos sociais. Portanto, é mera questão de tempo para que os conceitos de
democracia, respeito aos direitos humanos e liberdade, finalmente, permeiem e
se apliquem a todos os pontos deste nosso Mundo.
Como
você pode ver, sinto muito a falta de pessoas inteligentes e cultas como você e
sua Mãe para trocar experiências e idéias sobre temas, para nós, tão
apaixonantes. Gostaria de tê-las por perto.
Recomendo
que todas vocês juntem um bocado de dinheiro e de tempo disponível para vir
passar uma boa temporada aqui com a gente.
Ao reler esse texto, ao relembrar tantos
acontecimentos que derrubaram tantas ditaduras no Mundo todo, mais ainda, ao
constatar a difusão, por toda parte, do conceito de cidadania, inclusive no
Brasil, eu me animo em ter fé nas predições que eu mesmo fiz: A Humanidade
marcha para a Democracia.
E esta previsão é tanto mais verdadeira
quanto melhor a tecnologia abra caminhos para a transparência dos atos de
governo, e para a coordenação espontânea dos cidadãos em defesa de seus
direitos contra os abusos, a corrupção, a ineficiência, a displicência e a
prepotência tão usuais, até agora, no comportamento dos agentes do Estado.
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