24 de fevereiro de 2008

O finlandês que fugiu do frio.

Tanja (pronuncia-se Tânia) abriu a porta do quarto e disse: “Vamos lá, seu malandro, ta um dia maravilhoso, a neve está só trinta centímetros, a gente limpa a neve do caminho, vai pra sauna e então dá um mergulho no lago. A água deve estar ótima a uns dois ou três graus”.

Miko olhou pra irmã e disse: “Birrrr... Não tem mais o que fazer? Vá chutar trilho!” Virou pro outro lado e tapou os ouvidos com as mãos. Miko não gosta do frio e está de saco cheio da vida monótona de Helsinque. Anda pensando em aventuras.

Passado algum tempo, Miko Häkkinen (o nome é fictício) abriu os olhos, olhou para o teto e pensou: “O que eu vou fazer? Não agüento mais essa droga de frio. Tenho que dar um jeito na minha vida”. Então tomou uma decisão: “Vou pra Amazônia dar uns palpites e ensinar aqueles caboclos e selvagens como se deve viver. Lá não tem neve, tem mosquitos, mas pelo menos fico longe deste frio de lascar”. Pegou o celular, digitou, fez a reserva, puxou o cartão de crédito, ditou o número e no dia seguinte embarcou para o Brasil. Agora está por aqui alardeando sabedoria de vida.

Socorrinho balançou a rede e disse: “Vamos lá, seu malandro, ta um dia maravilhoso, a gente dá um mergulho no igarapé e vê se flecha um pacu, quem sabe uma pirapitinga. Depois vai apanhar açaí que a mãe disse que acabou. No caminho procura algum cupuaçu madurinho”. Dorivalson, que todos conhecem por Dori, levantou, pegou a zagaia, um paneiro e saiu tagarelando alegremente com a irmã. Atravessaram o seringal a caminho do igarapé.

Dori nunca pensou em dar palpite na vida de outras pessoas, muito menos finlandeses, italianos e outros gringos. Nem sabe que existe um país chamado Finlândia. Onde Dori vive não tem neve nem frio. Dori também não tem maiores preocupações, nem cartão de crédito, nunca andou de avião. A diferença entre Miko e Dori é muito maior do que isto. Ao contrário de Miko, Dori não tem quarto só para ele, dorme junto com o resto da família no ambiente único da palhoça. A renda per capita anual do povo de Miko é de quarenta mil dólares, a de Dori é de apenas mil e duzentos. Miko tem treze anos de estudos, sem contar creche, jardim de infância, pré-escola. Dori é analfabeto, não sabe ler, embora saiba contar dinheiro e fazer troco. Miko tem assistência médica completa paga pelo governo, Dori nunca viu um dentista. Os parentes de Miko vivem além dos oitenta anos, o pai de Dori morreu com trinta e cinco.

Pelas estatísticas internacionais, a classificação do PIB de 229 paises, conforme o poder de compra das respectivas moedas, coloca a Finlândia em qüinquagésimo quinto lugar, com quase cento e noventa bilhões de dólares, menos de trinta décimos por cento do PIB mundial. O Brasil é muito maior, em território, população e renda total; está em décimo primeiro lugar, com perto de um trilhão oitocentos e quarenta bilhões de dólares, equivalentes a quase três por cento do PIB total da Humanidade. Mas quando as coisas são medidas per capita, inverte tudo, a Finlândia fica em vigésimo e o Brasil em septuagésimo sétimo lugar. As coisas pioram quando comparamos os indicadores de desenvolvimento humano dos dois paises. Aqui a Finlândia está em décimo primeiro lugar, enquanto o Brasil cai para o septuagésimo, último entre os mais desenvolvidos. Se considerarmos apenas os indicadores da região onde Dori vive, a coisa aparece realmente ruim, como de fato é na vida real.

A preocupação de Dori é melhorar de vida, a de Miko é salvar o Planeta. Miko pretende que Dori continue do jeito que está. Miko sabe que se Dori tiver dinheiro na mão, isto é, se tiver emprego e renda, vai ser mais um consumidor a contribuir para esgotar recursos não renováveis. Isto não interessa aos financiadores de Miko. Por isso, Miko faz de tudo pra convencer Dori a se manter feliz, ignorante e pobre, a troco de alguns donativos. Estão fazendo com Dori o mesmo que os colonizadores fizeram com os indígenas, levavam o ouro em troca de espelhinhos. Dori fica feliz em receber a esmola. Miko ganha bônus de seus patrões.

Miko é um cara bacana, cursou ótima universidade, tem bons patrocinadores interessados em estagnar a Amazônia à espera do tempo certo para vir aqui tomar posse do que pertence a Dori. Dori não sabe, mas está sofrendo lavagem cerebral, está sendo alienado e condicionado a pensar e agir conforme a conveniência de gente que ele nem sabe que existe. Miko não se importa se o sonho de Dori é ter vida tão boa e plena quanto qualquer finlandês, canadense ou neozelandês, poder algum dia acordar, consciente, e escolher seu destino, decidir os rumos de sua própria vida. Dori é apenas um peão, um joguete no enorme tabuleiro de interesses das grandes potências.

 

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