Esta crônica foi publicada em julho de 2006 no jornal O Estado do Tapajós em
comemoração aos cinquenta anos de casamento de Nancy e Sebastião, e republicado
agora.
Quando criança, eu preferia
gatos. Não me chegava muito aos cães. Gatos, sim. Alguns que tive dormiam
comigo na cama mesmo sob veementes protestos de minha mãe. Eles se enroscavam
em meus tornozelos, esfregavam o corpo todo, do focinho à cauda, em minhas
pernas, ronronavam satisfeitos e se acomodavam tranquilamente em meu colo
sempre que me acomodava para ler, coisa de que sempre gostei, desde muito cedo.
Quando criança e mesmo depois, já rapaz, preferia os livros às brincadeiras.
Foi apenas quando conheci
Fernando de Noronha que as coisas começaram a mudar. A ilha não possuía
qualquer facilidade de ensino. Assim, minha
mãe foi obrigada a fundar uma escola primária que dirigiu durante todo os
vários anos em que meu pai ali serviu na dupla função de governador e comandante
da guarnição militar. O arquipélago era, então, Território Federal. Meus irmãos
menores, em idade escolar, foram todos matriculados naquele recém criado
estabelecimento. No entanto, quando meu pai foi transferido para o novo posto,
estava eu no primeiro ano do ginásio no Colégio Pedro II do Rio de Janeiro e
tive que ser hospedado em casa de amigos até o final do ano letivo. Não havia
como estudar no arquipélago. Para ficar mais perto da família, fui internado no
colégio dos jesuítas do Recife. A cada
final de semestre letivo, ia eu de férias para Noronha.
Gostar de livros é uma coisa,
mas ser trancado com eles, meses a fio, sob supervisão de severos bedéis, é
outra muito diferente. Por isto, quando me vi solto na selvagem natureza
daquelas ilhas, tomei-as de assalto numa roda-viva de correr, nadar, montar,
pescar, navegar de lancha, escalar penhascos e picos, mergulhar e praticar
todas a loucuras esportivas que meus irmãos e eu inventássemos e que durava
exatamente o período das férias, um mês no meio do ano, três no final.
Meus irmãos eram meus
companheiros, evidentemente. Um deles apareceu, certa vez, com um filhote de
cão noronhez, raça que se formou por seleção natural no isolamento da ilha. Era
branco com manchas pretas. O noronhez, se é que ainda existe, após tantos anos
sem ter quem cuide da raça, que aliás nunca teve, lembra um pouco o corpo do dálmata,
mas é mais forte, mais encorpado, focinho mais grosso e tem variedade de cores.
Demos a ele o nome de Tico. Que cão. Corajoso, ágil, companheiro. Subia
penhascos, com alguma ajuda, em certas passagens, mas subia, e nos acompanhava
pelos escolhos das cabeceiras das praias ou os que aparecem na maré baixa. Seguia-nos
por ali e metia o focinho dentro d’água tentando abocanhar algum peixe que
ficasse retido no refluxo das ondas. Uma
vez quase foi abocanhado por uma moreia. Livrou-se a tempo, saltando de lado e,
em seguida, contra-atacando, sem resultado. Mas, uma vez, segurou um pequeno
polvo até que o livrássemos do apuro já que o molusco se agarrara às pedras num
verdadeiro cabo de guerra. Na época, Noronha tinha pequenos rebanhos de cabras,
vacas e cavalos e Tico adorava nos acompanhar nas cavalgadas desabridas para
laçar potros xucros e trazê-los para serem domados.
Tomei-me de completa amizade
por Tico e, em decorrência, abandonei os felinos. Adotei definitivamente os
cães como meus preferidos. Quando nos mudamos para o Recife, Tico nos
acompanhou no avião e, finalmente foi de navio conosco para Santarém.
Em nosso primeiro domingo
após chegarmos a Santarém, meus irmãos e eu saímos na Eunice, uma lancha com o
nome de minha irmã, em nossa estréia em passeios pelo encontro das águas do Tapajós
com as do Amazonas. A Eunice era um barco marolento. Quando passamos por uma
canoa movida a motor de popa, cheia de crianças, as marolas a fizeram dar
alguns pinotes. Foi o suficiente para que uma morena, linda como jamais vi
outra igual, se enchesse de ira e vituperasse contra nossa imprudência. Além do
mais, Tico nos acompanhava, com as patas dianteiras sobre a amurada e um olhar
altaneiro sobre a cena. Um cãozinho preto, na canoa, latia, mais furiosamente
ainda, contra Tico. Eu achava tudo uma graça. A morena, muito ao contrário.
Contrariada, mandou que a canoa embicasse na areia e parou o passeio. Como
disse, a morena era linda e seu ar imperativo me impressionou.
Paramos, também, e saímos a
passear na praia em companhia de nosso lindo e enorme cão. Ao passarmos pelas
mesmas crianças que estavam, há pouco na canoa, uma delas, Ieda, como vim depois
a saber, sobrinha da bela morena, se atemorizou com o cão e começou a choramingar.
A tia, linda em sua irritação, novamente, vituperou contra mim. Tentei me
aproximar, mas fui impedido. Só quando meu irmão afastou o Tico é que pude
trocar algumas palavras com a morena.
Poucos anos depois, eu já
morava no Rio de Janeiro, recebi telegrama de meu pai pedindo que lhe enviasse
vacinas anti-tetânica e anti-rábica. Um irmão meu havia sido mordido por cão
raivoso. Saí em busca dos remédios, que
encontrei, altas horas da noite, após bater de porta em porta a cidade toda, no
hospital Antônio Pedro de Niterói. Ainda tive que pedir, implorar, brigar, que
era caso de vida ou morte. Parti para o aeroporto do Galeão onde, finalmente, encontrei
um tripulante com destino a Manaus, com escala em Santarém, que aceitou levar
as vacinas.
O cão era o Tico e meu irmão
o matou. Perguntei-lhe como tivera coragem e ele respondeu que se estivesse
ameaçado de morte e tendo que tomar quarenta injeções na barriga eu também
faria o mesmo. Não tenho dúvidas que sim, mas ainda tremo ao pensar nisto.
Tico, firmemente amarrado, recebeu uma bala na nuca. Apesar da raiva, espumando
e ganindo, ainda balançou o rabo quando meu irmão se aproximou com a arma.
Depois de Tico, tive cães,
mas nunca lhes dediquei tanta amizade. Entretanto, como disse e repito, a
morena era linda e seu ar imperativo me impressionou. É por isso que me casei
com ela e estamos juntos a quatro décadas. Há quarenta anos ela vitupera contra
mim. Eu acho tudo engraçado, porque temos muitos filhos e muitos netos. Tudo
graças ao Tico.