7 de outubro de 2005

Uma Reforma Política para o Brasil 2010

Sebastiao Imbiriba*

“Democratizar é garantir direitos das minorias"


Se espanhóis não podem acreditar nas promessas de campanha do Partido Socialista e brasileiros descobrem que o programa do PT jamais seria dogma de fé, quem vai acreditar em programas e ideologias destes ou de qualquer outro partido?

Os partidos políticos viverão em função de suas próprias existências, sem utilidade para a vida nacional e para o desenvolvimento do país.

... uma verdadeira reforma política e, mesmo, uma alteração na legislação eleitoral deveria ser debatida em audiências públicas em cada comunidade, distrito, município e estado da federação antes de ser submetido a plebiscito.

... as normas eleitorais são da maior importância numa democracia. São essas leis que regulam a escolha dos representantes do povo e protegem as minorias.


O Autor propõe que continuem a existir os partidos ideológicos e os demais pequenos partidos, por que são estes os que permitem, de fato, melhor representatividade às diversas correntes de opinião e interesses e, na exata medida em que o façam corretamente, poderão se revelar os grandes partidos do futuro.


Resumo
A Comissão de Reforma Política da Câmara dos Deputados prepara tenebroso atentado à democracia, à representatividade e aos direitos das minorias. O autor expõe as sinistras intenções de auto perpetuação do estamento político dominante e lança proposições que acredita poderem aperfeiçoar a democracia, a liberdade, a representatividade popular, ao mesmo tempo em que permitem melhorar a postura ética de eleitos e eleitores.

Tais proposições incluem:
criação de distritos eleitorais e de uma instância eleitoral inferior ao municipal;
voto distrital majoritário para todos os cargos eletivos exceto para metade da Câmara Federal a qual seria escolhida por listas preordenadas em voto de legenda;
redução dos mandatos de senadores para seis anos com votação a cada dois anos.




Direito das minorias

A forma mais fundamental de democracia é o voto universal plebiscitário pelo qual cada cidadão propõe, fiscaliza e julga as questões de Estado, pessoalmente, sem intermedição. A representação política foi criada pela impossibilidade de se reunirem todos os eleitores devido a circunstancias geográficas, climáticas e econômicas. O representante político é um intermediário, atravessador, que pode ser muito útil e muitas vezes indispensável ao exercício da democracia, mas que, necessariamente, diminui as prerrogativas democráticas do representado e, muitas vezes, se aproveita de sua boa-fé para o iludir e prejudicar.

Os preceitos mais fundamentais dos regimes democráticos são a garantia dos direitos individuais e a representação política das minorias. A menor minoria é o indivíduo. Seus direitos devem ser assegurados e exercidos livremente. Daí a noção de Direito do Indivíduo e Direitos Humanos. Costuma-se falar de direitos coletivos. Direito coletivo é ficção criada para justificar ideologias coletivistas. O coletivo não sente e não sofre a injustiça; quem sente e sofre é o indivíduo, cada um deles que compõem o coletivo. Quando se diz que uma instituição, uma empresa, por exemplo, teve lucro ou prejuízo, na realidade, quem teve seu patrimônio alterado foi o acionista, o proprietário e, se uma instituição for julgada culpada de delito contra pessoa, o fisco ou o meio ambiente, quem finalmente paga a multa e vai para a cadeia é o indivíduo responsável por ela. É impossível condenar à prisão e encarcerar a instituição, pessoa jurídica; quem vai para a cadeia é a pessoa física, o indivíduo.

Portanto, embora para os estabelecer e melhor defender os cidadãos se agrupem conforme seus interesses comuns, estabeleçam associações as mais diversas, inclusive partidos políticos, todos procurando promover e defender os interesses particulares das diversas parcelas da sociedade, direitos e prerrogativas, em última análise, são sempre pessoais.

A Humanidade percorreu longo caminho de embates, sofrimentos e sacrifícios para definir direitos das pessoas, desde os filósofos gregos da antiguidade, aos enciclopedistas do século XVIII, à Declaração de Independência das treze colônias americanas, à Constituição dos Estados Unidos da América e suas emendas da Bill of Rights, à Declaração dos Direitos do Homem na Revolução Francesa, aos ensinamentos e ao exemplar pacifismo ativo de Gandhi, até às paradas de “orgulho gay”, consolidando, cada vez mais, os direitos naturais, políticos, econômicos, trabalhistas, de consumidor, sociais, civis e sexuais. No processo, incontáveis heróis ofereceram suas posses, seus amores, suas vidas.

O surgimento de partidos políticos organizados no Brasil aconteceu apenas a partir de 1831 no período da Regência Trina com liberais (chimangos, que apoiavam o governo), liberais exaltados (farroupilhas, que a ele se opunham) e restauradores (que pretendiam o retorno de Pedro I). Mais tarde, o Partido Liberal, sucessor dos progressistas que apoiaram Feijó até sua renúncia e o Partido Conservador, que congregara os opositores ao liberalismo do regente único, constituíram a dualidade política que se revezou no poder e governou o Império até a proclamação da República.
Quem quer que tenha passado os olhos pela história pátria se convencerá de que esses partidos representaram exclusivamente os interesses das elites, em detrimento do resto do povo, dos escravos, dos trabalhadores, da incipiente classe média, dos cidadãos sem posses ou rendas, das mulheres e de todos os demais segmentos da sociedade, excetuada a minoria que se revezava no poder. Na República Velha não foi diferente. A revolução pseudo liberalizadora de 1930 resultou na Ditadura Vargas que, por um lado, exercitava política trabalhista nos moldes do fascismo italiano enquanto encabrestava sindicatos operários e patronais e, por outro, promovia os interesses da parcela das elites antes prejudicada pela política “café com leite”.

O pós-guerra trouxe ares liberalizantes que logo se transformaram na farsante social-democracia do PSD, no falso libertarismo udenista, no peleguismo petebista e no fechamento do PCB cuja única razão de ser eram os interesses da União Soviética. Os partidos que resultaram da dicotomia artificial imposta pelo regime militar desaguaram no painel partidário que hoje envergonha nossa pátria.

Sem entrar no mérito de caráter, competência, comportamento ético e postura republicana de qualquer destas pessoas, o autor se pergunta a quem o PMDB do Pará representa senão a Jader Barbalho? A quem o PFL da Bahia representa senão a Antonio Carlos Magalhães? A quem o PT nacional representa senão a Luiz Inácio Lula da Silva? A quem o PP de São Paulo representa senão a Paulo Salim Maluf? A quem o PFL e o PMDB do Maranhão representam senão a Jose Ribamar Sarney? A quem representa o PMDB do Distrito Federal senão a Joaquim Roriz? E continuaria a perguntar e perguntar sem encontrar partido que represente o povo desta nação. Porque os partidos são estruturados para perpetuar seus coronéis no comando de currais eleitorais sobre os quais se posicionam para as barganhas políticas, troca de cargos e interesses financeiros, controle de contratos com empreiteiras, fornecedores de materiais, serviços e publicidade.




O projeto infame

Os inimigos da Humanidade estão sempre à espreita e, furtivamente, traiçoeiramente, atentam contra a cidadania, a liberdade, a democracia, a representatividade das minorias e do cidadão. A Câmara Federal prepara casuística ficção jurídica denominada “Reforma Política”, composta de “lista preordenada”, “cláusula de barreira”, “federação de partidos” e “financiamento público exclusivo de campanha eleitoral”, com evidente intenção de eliminar os pequenos partidos. Políticos mal intencionados pretendem enfiar tal aberração goela-dentro de atônito eleitorado acostumado a e sempre desejoso de votar em pessoas de carne e osso e nunca em quimeras denominadas “partidos políticos”, tanto assim que votos de legenda não passam de cinco por cento do total em todas as eleições. Depois de tentarem, por diversas vezes, impor exóticos regimes parlamentaristas ao povo brasileiro, idealistas utópicos alienados, articuladores maquiavélicos e políticos corruptos tentam nos impingir essa famigerada reforma política. Acredito que a nação brasileira não deve continuar a infeliz prática de eternizar no poder camarilhas corruptas e ineficazes, como se pretende com o projeto de reforma política em curso na Câmara Federal.


Um dos fatores que desigualam os diferentes segmentos da cidadania é o econômico, principalmente nas disputas eleitorais, nas quais os que dispõem de maiores recursos - financeiros, de estrutura organizacional, apoio da mídia, etc. - se posicionam com grande vantagem sobre os demais, mormente sobre os que não dispõem de qualquer recurso. Exatamente por isto, a legislação eleitoral prevê formas legais de financiamento de campanhas eleitorais, prazos de abandono de cargos públicos e de atuação na mídia, etc. Apesar disto, tem havido sempre profundo desrespeito à legislação e abuso na busca e uso de recursos de financiamento das campanhas eleitorais. Certamente, tais ilegalidades devem ser prevenidas, coibidas e punidas.


O caminho mais certo e curto para isto seria a punição exemplar dos infratores, uma vez que o exemplo é e será sempre o meio mais eficaz de manter a melhor equalização entre os candidatos a cargos eletivos. E aqui está uma das mais importantes funções das minorias que, quando prejudicadas, procuram o apoio da mídia para revelar os crimes e acusar os criminosos.


Argumenta-se com o gasto, que se considera absurdo, de hipotéticos nove bilhões de reais, nas campanhas eleitorais dos candidatos aos diversos cargos em disputa durante as eleições de 2002, para justificar projeto de lei em curso na Comissão de Reforma Política da Câmara dos Deputados, praticamente sem conhecimento da sociedade, cujo único propósito é eternizar no poder seus atuais detentores. Tal projeto de lei, impulsionado pelo próprio Presidente da República, não passa de novo golpe de um parlamento casuístico, desmoralizado e, pelo que diz a mídia, corrupto.

Analisemos esta farsa que estabelece:
a - financiamento público das campanhas eleitorais com recursos exclusivos previstos no Orçamento da União rateado conforme o tamanho dos partidos;
b - listas preordenadas de candidatos a cargos legislativos, votando o eleitor na lista e não no candidato;
c - federações partidárias, que substituem as coligações, para congregar pequenos partidos ideológicos que, de outra forma, seriam eliminados;
d - cláusula de barreira para dificultar a troca de partidos.

Pela estreiteza da pauta que, por exemplo, não contempla o voto distrital, vemos tratar-se de tudo, menos de “reforma política”.


O projeto pretende alocar no Orçamento da União cerca de sete reais por eleitor para as eleições gerais de 2006, o que daria um total de menos de novecentos milhões de reais. Resta saber o que é de fato real, se a estimativa do absurdo de nove bilhões gastos em 2002 ou a possibilidade de se fazer campanha em 2006 com apenas um décimo dessa importância. A disparidade dos números indica profunda distorção para um lado ou outro e o eleitor fica sem saber qual seja, de fato, o pior. Argumentam os proponentes do projeto que a instituição das listas preordenadas, por serem poucas, dará condições à Justiça Eleitoral de auditar as contas de campanha, coisa que pelo esquema atual seria impossível por serem muito os candidatos, cada qual com sua contabilidade de financiamento individual, além disto, o controle seria através dos partidos, incentivando a participação da sociedade que exigiria prestação de contas de seus representantes. Este argumento é uma falácia, porquanto o controle pode ser perfeitamente realizado por amostragem para dar certeza estatística, da mesma forma como a Receita Federal verídica declarações de imposto de redá e a Controladoria da União afere contas municipais, ambas com resultados aceitáveis.


Nenhum país adota o financiamento exclusivo e, portanto, não há exemplos de suas conseqüências e sua efetividade. O financiamento público exclusivo e a lista preordenada, não somente, não impedirão, por si sós, o financiamento privado das campanhas eleitorais, como introduzirão viés impeditivo da renovação política nacional, mantendo os caciques no poder e dificultando o aparecimento de novas lideranças. Caso o financiamento público exclusivo, a lista preordenada e a cláusula de barreira tivessem sido adotados há vinte anos, PSDB e PT possivelmente não teriam adquirido a expressão político-eleitoral que hoje têm e nem chegado ao poder; enquanto isto, o PMDB provavelmente teria se tornado gigantesco. É que o financiamento exclusivo aloca aos partidos recursos proporcionais aos votos das últimas eleições, fazendo com que os grande se tornem maiores, os médios encolham e os pequenos desapareçam.


O projeto em curso institui lista preordenada, a ordem de precedência dos candidatos escolhidos pelo partido, imposta aos eleitores que votarão apenas na sigla e não nos candidatos individualmente. O candidato no topo da lista será eleito se quociente eleitoral do partido for suficiente, sendo os demais candidatos eleitos enquanto houver saldo de votos. Haverá vários critérios para escolha dos participantes na lista, entre os quais, o prazo de filiação partidária, havendo propostas de prazos de dois, três e quatro anos para que um novo filiado possa se candidatar a figurar na lista preordenada.


O objetivo dos proponentes do projeto de lei é que o eleitor, em lugar de votar em nome de sua livre escolha, vote na lista escolhida pelo partido, supondo que estará votando na ideologia ou programa do partido. Aqui está outra falácia. O Partido Socialista de Felipe Gonzáles fez campanha ultra-radical de esquerda e os eleitores espanhóis acreditaram que teriam um governo socialista. No entanto, já nos primeiros meses de governo o presidente (primeiro ministro) Gonzáles era chamado de neoliberal pela política que adotou obediente ao “Consenso de Washington”. Da mesma forma, a ideologia socialista da história do PT foi abandonada e o programa de campanha do candidato Lula relegado pelo presidente eleito. Segundo denúncias correntes na mídia, para completo desencanto de seus correligionários e constrangimento de toda a sociedade, para estabelecer base de apoio no Congresso o PT adota os mesmos e até piores esquemas de corrupção de que acusava outros partidos. Se espanhóis não podem acreditar nas promessas de campanha do Partido Socialista e brasileiros descobrem que o programa do PT jamais seria dogma de fé, quem vai acreditar em programas e ideologias destes ou de qualquer outro partido? A falácia dos proponentes da “Reforma Política” fica assim completamente desmascarada.


Ideal seria que se pudesse introduzir democracia interna nos partidos, obrigando a que as convenções definam os candidatos por pré-candidaturas e votos igualitários de todos os afiliados. A dificuldade reside no limite da lei em interferir nos assuntos de foro interno dos partidos. Os propositores do projeto pressupõem democracia interna nos partidos políticos, o que ninguém de bom senso acredita, uma vez que partidos políticos, em toda parte, no mundo todo, são dominados ou possuem forte predomínio de seus caciques e medalhões. Ninguém depositaria fé nas chances de um novo afiliado do PSDB, por mais brilhante e competente que fosse, se tivesse que competir por um lugar na lista preordenada com um Fernando Henrique, um José Serra ou outros próceres de peso semelhante.


É perfeitamente justo que líderes de um partido, seus fundadores e puxadores de votos tenham lugar proeminente. O problema é que, se o sistema atual já preserva as cúpulas dos partidos, o sistema proposto os eterniza e impede a renovação tão preciosa ao regime democrático. Ocorrerá o mesmo que no regime militar, com governadores e Congresso encabrestados, sufocando as mais promissoras lideranças, mantendo o estamento político dominante desde quando substituiu a “república café com leite” elevado ao poder pela revolução de 1930. A esse estamento incorporou-se novo elemento suficientemente hábil para manobrar e crescer durante o regime militar, o Partido dos Trabalhadores. Tal estamento prepondera no cenário nacional.


Outra inovação proposta no projeto de lei é a federação partidária, sucedânea de coligação partidária, artifício que permite agrupamento de pequenos partidos que devem permanecer interligados pelo prazo mínimo de três anos. A federação formaria, com candidatos de suas diversas tendências, lista preordenada única validada pelo total de votos que o conjunto dos partidos federados tenha obtido nas últimas eleições e financiada proporcionalmente a essa votação. A federação partidária teria por finalidade garantir que pequenos partidos com forte viés ideológico possam sobre-existir diante das restrições criadas pelos critérios de concessão de financiamento público exclusivo que, como vimos, privilegia os grandes partidos.


Fica difícil imaginar interagindo harmonicamente numa federação partidos criados a partir de cisões, voluntárias ou forçadas, de agremiações como o PT, PCB, PCdoB e outros, dentro dos quais minorias não se sentiam suficientemente bem representadas ao ponto de serem forçadas a formar novos partidos. Se o objetivo casuístico for o de proteger partidos ideológicos, resta a dificuldade de definir qual partido seja ou não ideológico e, até mesmo, o que seja ideologia ou qual ideologia mereça ser preservada e em benefício de quem. Os pequenos, denominados pejorativamente “partidos de aluguel”, não deixam de ter suas ideologias particulares o que é privilégio do regime democrático e deve ser protegido sob pena de colocar em risco os próprios conceitos de cidadania e democracia, simplesmente porque ninguém pode se arvorar ao direito de prejulgar quem quer que seja no quesito de liberdade de pensamento e de perseguir o interesse próprio, ou seja, de buscar a felicidade, na forma que melhor julgar dentro da Lei.


Por fim, o projeto institui a cláusula de barreira, conjunto de preceitos destinados a dificultar a troca de partido por eleito em outra agremiação, incluindo desde prazos de filiação mínimos de dois a quatro anos para dar ao novo afiliado o direito de pleitear sua inscrição na lista preordenada, até a perda do mandato eletivo de quem troque de partido. De fato, a troca de partido fica inviabilizada de tal modo que mesmo por razões extremamente válidas, como as éticas, por exemplo, os partidos ficam estratificados, impossibilitados de corresponderem às dinâmicas demandas da sociedade. Os partidos políticos viverão em função de suas próprias existências, sem utilidade para a vida nacional e para o desenvolvimento do país.


Um outro projeto de lei propõe a coincidência das eleições de modo que passaríamos a ter eleições apenas a cada quatro anos. Embora isto possa resultar em pequena economia para o erário público, tal vantagem não compensa duas importantíssimas virtudes da realização de eleições de dois em dois anos, qual sejam:

aa - o papel educativo e moralizador da freqüente atenção da sociedade e do eleitor sobre a coisa pública;
b - a diminuição do risco de que um líder carismático eleito em avalanche de votos se aposse do poder em todos os níveis sem que eleições municipais dois anos após possa colocar em cheque suas idiossincrasias e suas pretensões ditatoriais absolutistas.

O Brasil não precisa de nenhum Hugo Chaves infernizando a vida nacional.




Uma reforma decente

Se o projeto em andamento na Comissão de Reforma Política da Câmara dos Deputados é antidemocrático por cercear a representação das minorias políticas, teríamos que ter alternativas que aperfeiçoem a prática política brasileira e é disto que trataremos daqui por diante.


Primeiro, uma verdadeira reforma política e, mesmo, uma alteração na legislação eleitoral deveria ser debatida em audiências públicas em cada comunidade, distrito, município e estado da federação antes de ser submetido a plebiscito. Na realidade, as normas eleitorais são da maior importância numa democracia. São essas leis que regulam a escolha dos representantes do povo e protegem as minorias. Infelizmente, nem mesmo as alterações na Constituição Federal requerem realização de audiências públicas esclarecedoras ou de plebiscito, instrumentos legitimadores absolutos e indispensáveis.


Em segundo lugar, é necessário proceder a uma distribuição territorial distrital do eleitorado tendo todos os distritos o mesmo número de eleitores com mínimas variações que possam ocorrer entre das eleições, sendo, após cada eleição, re-alinhados conforme as variações demográficas eleitorais. Desta forma, estados populosos como São Paulo e Minas teriam muito maior número de distritos do que os de população mais rarefeita como o Amazonas, restabelecendo a verdade e justiça representativa nas casas de representação proporcional, como sejam a Câmara Federal, as Assembléias Estaduais, as Câmaras Municipais e os Conselhos Comunitários aqui propostos.


Os estados não teriam mais um número mínimo de deputados federais, mas seriam representados tão exatamente quanto possível na proporção dos respectivos eleitorados. Da mesma forma, por exemplo, a Assembléia Estadual de São Paulo teria número maior de deputados estaduais do que a do Amazonas, sempre com o mesmo quociente eleitoral. Assim, teríamos as igualdades:

a - um eleitor igual a um voto;
b - um representante eleito igual a um número constante de votos.

Dentro dessa redistribuição territorial distrital, seriam instituídos os Conselhos Comunitários ou de Vila de forma que as questões locais possam se discutidas no próprio âmbito comunitário. Esta seria uma forma de institucionalizar governança exercida informalmente por determinadas organizações não governamentais que se auto delegam o papel de Estado sem regulação legal nem legitimação eleitoral.


Para exemplificar, os coeficientes eleitorais poderiam ser: 500 mil votos para eleger um deputado federal, 250 mil para deputado estadual, 25 mil para vereador e cinco mil para conselheiro comunitário. Tais números devem levar em conta os levantamentos censitários mais recentes e a praxe adotada no Brasil e em outros países democráticos para se estabelecer o número de representantes. Os atuais quinhentos e poucos deputados federais parecem ser adequados para correta representação das diversas correntes de pensamento político brasileiras e o mesmo parece ocorrer com as assembléias estaduais e as câmaras municipais. Restaria apenas definir a constituição numérica dos Conselhos Comunitários.


A votação para a totalidade dos conselheiros, vereadores, deputados estaduais e metade dos deputados federais seria por voto distrital majoritário, cada partido apresentando candidatos em dobro do número de cargos em disputa, permitindo que o maior número de tendências políticas e minorias possa se apresentar ao voto popular, de maneira direta, junto ao eleitor, possibilitando estreito relacionamento pessoal entre eleitor e candidato, facilitando a que cada eleitor apresentar sua candidatura se o desejar e, com isto, aumentar a efetiva participação do povo no processo democrático.


A outra metade dos deputados federais seria eleita por voto de legenda, com os membros da lista preordenada indicada por convenção partidária conforme o estatuto de cada partido, fazendo com que os políticos de maior prestígio, mesmo sem eleitorado pessoal, possam se apoiar no bom conceito e apelo eleitoral de seu partido. Por um lado, o voto distrital majoritário, moralizador na medida da postura ética tanto do candidato quanto do eleitor, permite o surgimento de novas lideranças, ajudando a renovar os quadros políticos. Por outra parte, o voto de legenda em listas preordenadas dá estabilidade à linha de pensamento dominante no partido, à sua plataforma programática e mesmo à sua ideologia, além de prestigiar suas lideranças mais expressivas, comprovadas pela militância ou pelos embates em pleitos majoritários distritais.


Presidente, governadores e senadores continuariam a ser escolhidos e votados como se faz atualmente, com exceção do mandato do senador que seria de seis anos, com eleição a cada dois anos, renovando um terço do Senado Federal a cada eleição. Desta forma, em uma eleição, o senador seria eleito junto com prefeitos e, na seguinte, junto com o presidente, o que seria um perfeito compromisso entre a renovação das lideranças, o equilíbrio político e estabilidade das instituições democráticas.


Ainda se pode considerar a oportunidade de alterar a composição federativa, criando novos estados e municípios ou reduzindo-os, se for o caso para melhor administração da coisa pública e melhor o equilíbrio representativo. Um país de alto conceito na pratica da democracia e dos direitos humanos, a Dinamarca, recentemente diminuiu o número de municípios para tornar mais eficientes as administrações locais. Este pode ser o caso em algumas regiões brasileiras em que há inúmeros municípios com pequeno território e parca população. O contrário ocorre em outras regiões em que grandes distâncias e falta de comunicação e transporte dificultam a administração. Mas este é tema para novas reflexões.


Como vimos, ideologias são ficções usadas apenas como engodo eleitoral. Ideologias cumpriram papel histórico, ajudaram a desenvolver direitos sociais e econômicos. No entanto, provavelmente, causaram muito mais sofrimentos do que benefícios à Humanidade. O autor e outros pensadores acreditam que o desenvolvimento dos direitos econômicos e sociais, alavancados pela ideologia, poderiam avançar da mesma forma que outras formas de direito, com embates, sim, como na Revolução Americana, na Francesa (antes do Terror), na luta por direitos humanos de Martin Luther King e pelos direitos nacionais e políticos do Mahatma Gandhi, mas com muito menos terrorismo, menos assassinatos e menos hecatombes.


Do ponto de vista humanístico, dos direitos humanos, não há distinção entre socialismo e fascismo, entre comunismo e nazismo. Todos foram extremamente cruéis e exterminaram vidas sem conta. Para o autor, portanto, é contra-senso defender ideologias, todas sempre tendentes a transformar seus seguidores em donos absolutos da verdade ao ponto de se tornarem fanáticos, terroristas e assassinos.


Proponentes do projeto de “Reforma Política” em curso alegam faltar ideologias e programas aos partidos, chamam de nanicos e de aluguel os pequenos partidos, o que, de modo geral, é opinião corrente entre os formadores de opinião. É tempo de refletir mais um pouco. O Autor propõe que continuem a existir os partidos ideológicos e os demais pequenos partidos, por que são estes os que permitem, de fato, melhor representatividade às diversas correntes de opinião e interesses e, na exata medida em que o façam corretamente, poderão se revelar os grandes partidos do futuro.

O papel da ideologia acabou. Esta é a nova era dos Direitos Humanos, da Democracia, da Liberdade.”

* Artigo publicado em 7 de outubro de 2005 nO Estado do Tapajós, jornal diário de Santarém, Pará, onde Autor (75) escreve sobre temas de interesse geral, principalmente amazônicos.

1 de outubro de 2005

Cartas de Dinamarca

Sebastiao Imbiriba*
Série de nove artigos já publicados relatando as impressões do Autor, durante sua estada de dois meses na Dinamarca, sobre a vida nesse País, o caráter de seus cidadãos, o cotidiano, a cultura, a arte, a vida familiar, bem como, sobre os brasileiros que ali vivem, trabalham, se integram nessa sociedade e para ela contribuem. Outros três artigos ainda em elaboração serão postados neste blog após publicados na imprensa.

Carta 1 – Primeiras impressõesAqui estou, em Copenhague, tentando descobrir formas de transmitir minhas experiências e emoções neste país encantador. Procuro algo interessante, que mereça registro. Começo com a mitologia nórdica, em cujo Valhalla, Olimpo escandinavo, a mais bela e sensual das deusas, Fráia (Freja em dinamarquês, Freya em inglês), protege o amor, a fertilidade, a abundância. E cito esta deidade porque não resisto à beleza dos versos e, percorrendo diligentemente o dicionário de uma língua desconhecida, verto ao português a primeira estrofe do hino nacional dinamarquês: “Adorável pátria nossa / De verdejantes florestas / Enseadas e campos ondulados / Enlaçados pelo grande mar azul / Esta é a velha Dinamarca / Eterno lar da bela Fráia”.

Se foi poética minha primeira emoção dinamarquesa é porque esta nação possui cultura admirável que se expressa na arquitetura, nas ruas, lagos e canais, parques e jardins, escolas, universidades, bibliotecas, teatros e museus. Quem se interesse por estes assuntos tem aqui muito que fazer. A Dinamarca tem artistas extraordinários, o pintor P. S. Krøyer e o escultor Bertel Thorvaldsen, por exemplo. E tem uma das glórias mundiais da literatura. Quem já não leu uma estória de Hans Christian Anderson cujo bicentenário de nascimento se comemora em 2005?

“Bem longe, onde a água é tão azul quanto a bela flor do milho e a água é clara como cristal, o oceano é muito, muito fundo…” Assim começa um dos mais belos contos de Hans Christian. Estória tão bela e tão famosa que inspirou diversas outras importantes obras de arte, entre elas, o desenho animado de Walt Disney, o balé de John Neumeier apresentado em primeira audição mundial em 15 de abril de 2005 no Teatro de Ópera de Copenhague e um dos mais expressivos símbolos desta bela cidade, preciosa escultura de Edvard Eriksen, a Pequena Sereia.

Carl Jacobsen, fascinado por Ellen Price, primeira bailarina do Teatro Real, ao assistir ao primeiro balé “A Pequena Sereia” pediu ao amigo escultor Edvard Eriksen que transformasse em realidade tríplice inspiração: o conto de H. C. Andersen, o balé nele baseado e a bailarina que o interpretou. A obra de Eriksen foi inaugurada em 1913 e a Pequena Sereia tem emocionado milhões de pessoas que a visitam, tocam, acariciam e beijam desde então.

Rendo minha homenagem ao mecenas Carl Jacobsen, proprietário da cervejaria Carlsberg e um dos homens mais ricos da Dinamarca em sua época. Foi quem erigiu, adquiriu o acervo e doou à cidade e ao Mundo o belo museu Ny Carlsberg Glyptotek, com importantes de peças arqueológicas gregas, etruscas, romanas e egípcias, impressionante coleção de múmias e sarcófagos faraônicos. Não somente tive o prazer de tocar e abraçar a Pequena Sereia, como de percorrer e apreciar as coleções do Glyptotek.

Museus não faltam em Copenhague e um de meus maiores contentamentos foi visitar o pequeno e precioso museu da Coleção Hirschsprung (Den Hirschsprungske Samling) onde se encontram algumas das obras mais importantes do período de 1800 a 1850 em Copenhague, a Era de Ouro Dinamarquesa, incluindo os óleos “Mulher diante do espelho” de C.W. Eckersberg e o “Retrato de Frederik Sødring” de Købke. Os salões de exibição incluem moveis da época, muitas delas de autoria dos próprios artistas. Os trabalhos que mais me impressionaram foram os de Peder Severin Krøyer, de época mais recente. Seus quadros revelam incrível capacidade de interpretar a realidade de forma criativa, com técnica impressionante e profundo sentimento. Krøyer viajara extensivamente pela Europa e foi influenciado por impressionistas do porte de Monet, Degas, Renoir e Manet. Nas décadas finais do século dezenove, Esquéem (Skagen), pequena vila de pescadores no norte dinamarquês, cuja cor do mar, ar limpo e pequenas dunas brancas produziam luminosidade especial, atraiu inúmeros pintores nórdicos. P. S. Krøyer, que ali passava os meses de final da primavera a início do outono, se tornou líder informal desse universo artístico tão talentoso. Possuo, em minha casa, em Santarém do Tapajós, reproduções de trabalhos de Krøyer, portanto, já conhecia a produção deste artista extraordinário. Foi intenso o prazer de apreciar diretamente as próprias obras. Emoção rara e sem preço. Espero que não única, porque há muito, muito mais a fazer, ver, aprender e apreciar neste país tão encantador quanto civilizado e receptivo.

Naquela ensolarada e amena manhã de verão nórdico, um amigo africano refugiado dos horrores políticos de seu país e asilado na Dinamarca, que esteve recentemente no Brasil, gentilmente me levou em seu automóvel até a representação diplomática brasileira. Ali ia em busca de apoio para o trabalho (voluntário, espontâneo, não remunerado, retirado do convívio com os netos) de promover a cultura e o turismo do Tapajós.

A embaixada da República Federativa do Brasil na Dinamarca nada tem a ver com o fausto do palazzo Panfili, na piazza Navona, sede da representação brasileira em Roma. Surpreendentemente, para mim, é uma casa modesta ao lado da residência do embaixador, defronte da estrada de ferro, em avenida periférica do elegante bairro residencial de Høllerup. Esperava encontrar luxo e conforto. Encontrei austeridade espartana num ambiente de trabalho e eficiência que pode revelar um pouco a forma como a diplomacia brasileira, com orçamento enxuto, cuida dos interesses nacionais em países amigos.

O embaixador Marco Cezar Meira Naslausky foi muito gentil em me receber, sem aviso prévio e a poucos minutos de sua partida para tratar de assuntos diplomáticos em Estocolmo. Perguntou sobre os motivos de minha viagem, sobre a situação econômica de minha cidade, quais meus objetivos e como ele poderia ser útil aos meus propósitos. Amável, cordial e objetivo. Gostei dele. Muito eficiente. Muito diplomático. Perguntou-me sobre a região da Amazônia onde vivo e ficou sensibilizado quando lhe relatei o deplorável estado de nossa economia, com milhares de desempregados devido à paralisação das principais indústrias e do desenvolvimento agrário e concordou com a absoluta necessidade de encontrarmos novas atividades criadoras de emprego e renda. Quando lhe falei sobre turismo, levou-me até o ministro conselheiro Luiz Gilberto Seixas de Andrade a quem pediu que facilitasse minha intenção de tentar promover fluxo turístico da Escandinávia para o Tapajós.

Luiz Gilberto deixou-me logo muito à vontade e revelou espírito facilitador. De forma muito didática, relatou as atividades da TAP na realização de work-shops de captação de turistas nórdicos para excursões no Nordeste brasileiro, falou sobre as enormes possibilidade do Brasil como destino de turistas escandinavos, de como esse nicho de mercado está sendo explorado com eficiência na abertura de novos destinos como Fortaleza, Natal e Recife, além, é claro dos tradicionalíssimos Rio, São Paulo, Foz do Iguaçu e Salvador. Deu-me alguns conselhos e apontou a absoluta necessidade da interação entre o poder público como coordenador e a iniciativa privada como provedora de produtos turísticos. Ressaltou o fato de empresas aéreas estarem promovendo vôos fretados para o Nordeste brasileiro. Luiz Gilberto já cuidava de mim como amigo e parceiro de longa data e me abasteceu com material sobre a Dinamarca, suas agencias e operadoras de viagem que trabalham com o Brasil.

Falamos, também, sobre artesanato e sobre meu desejo de promover exposições de artesanato do Tapajós na Europa. Forneceu-me estudo intitulado “Artesanatos, uma pesquisa de mercado para artesanatos na Dinamarca” e prometeu providenciar um estudos sobre a incidência de impostos na importação desse tipo de material. Por fim, numa demonstração de gentileza que muito me sensibilizou e só se pode esperar de verdadeiro diplomata, o ministro conselheiro Luiz Gilberto me acompanhou até à rua onde me aguardava meu cicerone africano.

Muito do que Luiz Gilberto falou sobre turismo é de meu conhecimento e até tenho escrito alguns artigos sobre o tema, mas seus comentários foram extremamente importantes para acrescentar, ilustrar e reforçar meu ponto de vista de que “sem acesso não há destino” e que, se pretendemos desenvolver o turismo no Pólo Tapajós, temos que encontrar um meio de vencer essa importante barreira. A recente decisão da VARIG de extinguir seus vôos para Santarém significa que já não há quem emita passagem aérea continua da Europa até Santarém. Não temos transportadora, não temos operadora e ainda não temos produto turístico a oferecer ao mercado europeu.

Na semana seguinte, saí a divulgar o Tapajós. BRASILIEN. O grande letreiro na vitrina anuncia roteiros turísticos para o Brasil. Entrei. Esta agencia de viagem não está na relação fornecida pela embaixada e isto indica que novos agentes se interessam por vender o destino Brasil. De fato, a gentil conselheira turística informa que a moda de viajar para a Tailândia está sendo substituída e o interesse agora é o Brasil, que não era assim até há pouco tempo, mas é crescente a demanda. Falei do Pólo Tapajós e fui solicitado a fornecer pacote completo incluindo transporte, hospedagem e receptivo em todas as escalas. Ela me fornece um belo catálogo da TAP, em dinamarquês, promovendo inúmeros destinos brasileiros e me informou que acabara de vender roteiro saindo de Copenhague incluindo Fortaleza, Rio de Janeiro, Foz do Iguaçu, Bonito e Manaus. Programa turístico fantástico.

Sai perguntando a mim mesmo: porque não Pará, Belém, Marajó, porque não Tapajós?
A manhã ensolarada e fresca promete belíssimo dia de verão setentrional. Desço dois andares de escada do velho prédio de apartamentos. Em Copenhague é raro encontrar edifícios com menos de um século de construído, a maioria tem mais do que isto, muitos, bem mais de duzentos anos. São bons prédios, belas fachadas neoclássicas, comuns na Europa desde a Renascença, com certa uniformidade a requerer cuidado na observação de preciosos detalhes que distinguem cada um entre tantos prédios semelhantes, igualmente antigos e igualmente belos. Houve neles grandes adaptações para a vida moderna a partir do final dos mil e oitocentos, que continuaram no entreguerras, mais ainda após a Segunda Guerra Mundial.
O Museu Nacional Dinamarquês conserva algumas de suas salas como eram na época em que o prédio fora residência dos príncipes herdeiros. Se um palácio real era daquela forma, luxo sobre estrutura incipiente, arquitetura primorosa sobre materiais grosseiros, embora bem trabalhados, pense como seriam as casas de pessoas comuns. Não há necessidade de ficar imaginando, o próprio museu mostra réplicas de residências, tanto de operários e artesãos, quanto da burguesia do tempo em que serrarias não dispunham de plainadeiras ou lixadeiras e, portanto, assoalhos e moveis não seriam todos perfeitamente regulares. No entanto, sejam simples ou luxuosos, bom gosto, cuidado e ordem estão sempre presentes e, quanto mais rico tenha sido o proprietário, mais arte se encontra por toda parte, como no dossel esculpido da cama de algum comerciante próspero. Isto explica, talvez, como, desde seu projeto original, esta cidade, sem grandes suntuosidades, vem sendo construída com tanto gosto artístico, com tanta sensibilidade.

No ponto em que a bela Avenida Dag Hammarskjoids Allé - endereço das embaixadas do Canadá e dos Estados Unidos - se encontra com a Osterbrogade, três preciosidades exemplificam, refletem e comprovam a arte, a sensibilidade e o cuidado a que me refiro. Uma delas são os cinco lagos centrais que se estendem por mais de três quilômetros até o planetário Tycho Brahe. Fiz esse passeio, diria essa apreciação, a pé, parando para observar, cuidadosamente, cada detalhe dessa paisagem construída pelo talento e pelo propósito da realização do belo, para assistir crianças alimentando, entre tantos pássaros aquáticos, elegantes cisnes brancos. Cisnes brancos e cisnes pardos, misto de cinza e bege, que nunca tinha visto e de que nunca ouvira falar.

A outra preciosidade é uma das muitas bibliotecas comunitárias de Copenhague. Bibliotecas me atraem, livros me fascinam, desde muito cedo me habituei à leitura; aos doze anos já havia devorado os vinte e quarto volumes da História Universal de César Cantú. Meu pai pontificava que toda a ciência do mundo está nos livros e que a única coisa de que se precisa é saber como procurar a informação de que se necessita. Para tanto, é necessário ter acesso aos livros e esta é a função das bibliotecas. Esta é moderna, bem equipada e me despertou atenção o grande número de pessoas que ali foram atendidas automaticamente, nos terminais de computação, devolvendo e retirando livros e discos. Observei menina de oito a dez anos que diligentemente passava uma meia dúzia de volumes pela leitora de código de barras enquanto a mãe simplesmente observava. Acho que um povo que lê muito deve ter algo de muito bom para dar e fazer, para si próprio e para o resto da Humanidade.

Finalmente, a última preciosidade é o cemitério Holmens Kirkegarden, obra prima de paisagismo e jardinagem, em que a monumentalidade das tumbas, reduzida a pequeninas lápides, foi substituída pela grandeza das belíssimas e variadas arvores e dos maravilhosos canteiros e gramados. Chama atenção a diversidade das árvores, talvez maior do que a do Botanisk Have (o jardim botânico), plantadas propositalmente para marcar, sombrear e embelezar. E que flores, que exuberantes e coloridas flores. O espaçamento entre as tumbas, as pequenas dimensões das lápides, os gramados, as sebes e alamedas eliminam a aglomeração de jazigos e o congestionamento comuns em cemitérios de outras cidades e dão a sensação, ao mesmo tempo de espaço e aconchego. De quando em quando, bancos convidam à pausa para o descanso, a reflexão, a saudade, a oração. Ao entrarmos, vimos uma moça deixar sua bicicleta e prosseguir a pé levando flores entre os braços; mais tarde a observamos sentada sobre os calcanhares, com as mão nos joelhos, chorando silenciosamente diante da pequenina laje que marca o lugar de sua tristeza e de sua saudade; saímos silenciosamente para não perturbar aquele momento de tão profunda consternação. Mais adiante, vimos pessoas sós, casais e até famílias sentadas na grama, ao sol da cinco, comendo e conversando baixinho; teriam ido ali levar flores, relembrar e reverenciar alguém a quem muito tenham amado.

Começa a se criar dentro e nós sentimento conflituoso entre duas forças antagônicas, a saudade que nos atrai ao Brasil e a bem-querença que adquirimos por este país tão comoventemente bem construído por seus habitantes.
O letreiro na venda em frente de casa informa: ”Grønt, Frugt & Blomster” (Verdura, Fruta e Flores). Frutarias, esta cidade é cheia delas, quase toda rua tem a sua, frutas de toda parte, manga do Ceilão, pêra da França, melão do Brasil. A variedade é imensa, um mundo de frutas, verduras e flores, muitas produzidas nesta nação tradicionalmente agrária, mas a maioria vem de outros países. Compro frutas, leite, coalhada para completar o que falta na geladeira. Será um café da manhã dinamarquês, porém com o jeitinho brasileiro do indispensável café com leite.

Hoje, convidados por casal amigo, teremos refeição tipicamente dinamarquesa. Nossa anfitriã é brasileira, nordestina do interior, de evidente ascendência holandesa; o marido é dinamarquês, descendente de vikings. O casal vive em confortável casa de subúrbio elegante na periferia do bairro onde estamos hospedados. O transporte urbano aqui, embora caro, é excepcionalmente bom e um ônibus moderno nos leva até lá em menos de vinte minutos por avenidas largas e arborizadas, em meio a parques, jardins e lagos. Os lagos aqui são todos artificiais, criados para amenizar e embelezar paisagens sem grandes atrativos naturais. A Natureza não foi muito generosa com a Dinamarca, mas o dinamarquês trabalhou arduamente para compensar e, por isso, viajamos através de extensos bosques, gramados e jardins.

Somos recebidos festivamente, até o enorme cão abana o rabo e se agita de um lado para outro. Ao contrario de esposas dinamarquesas, a anfitriã é típica dona de casa brasileira. Embora jovem, assume seu papel de matrona dedicada ao cuidado do marido, criação dos três filhos pequenos, aos afazeres domésticos, ao jardim gramado e florido, aos seus bordados e arranjos florais, a atividades comunitárias. O anfitrião parece apreciar muito sua família à moda antiga, que o mundo moderno torna muito restrito aos que realmente querem e podem. Importante advogado, é apreciador das artes, inclusive da culinária e dedica cuidados especiais aos quadros, fotografias e móveis mais que centenários da pousada à beira-mar que seus avós possuíam numa pequena cidade de veraneio.

O anfitrião volta rapidamente ao fogão e às panelas, é ele quem prepara o almoço, comida dinamarquesa. Bem, se uma coisa é dinamarquesa e se encontra por toda parte, é salsicha, a popular "Pølsevogne" e você pode pedir um cachorro-quente francês, que jamais encontrará na França, com salsicha de galinha enfiada num pão roliço do qual se retira o miolo, ou um cachorro-quente italiano com molho de pizza que a Itália nunca viu. É o tipo de comida que você vê as pessoas comendo no Tívoli, embora esse parque possua inúmeros e até bons restaurantes, alguns dois dos quais servem “comida dinamarquesa”.

Em casa, você pega uma fatia de pão de forma, que obrigatoriamente tem que ser de centeio, passa bastante manteiga (a dinamarquesa é deliciosa), divide ao meio e coloca em cima de cada meia-banda aberta uma variedade de coisas que vão de salame, “remoulade” (maionese com picles) e cebola frita ou mesmo crua, até uma fatia de patê de fígado, um pouco de banha temperada, gelatina de suco de carne, fatias finíssimas de filé, cebola, salsa e mais o que você achar que cabe em cima. O nome disto é smørrebrød (pronuncie smêR ebrô, com o R vindo do fundo da garganta, o som vai ser parecido com o verdadeiro e impronunciável sotaque de Copenhague).

Se você quer saber, a comida dinamarquesa que se encontra por ai nos restaurantes e mesmo em casa é tão universalizada, cheia de tantas influências, que nem se pode dizer de fato que seja a típica comida da terra. Antes da globalização, a culinária local era mais a comida da gente pobre do campo, baseada nas criações e plantações dos pequenos agricultores e dos pescadores. Quase sempre coisa demorada de preparar e cozinhar, hoje reservada a ocasiões importantes, batizados e casamentos ou visita de amigos muito especiais.

Para despertar o apetite, começamos com a fortíssima aguardente da ilha de Bornholm, uma especialidade. O almoço começou com arenque de todo jeito: ao natural, marinado, ao caril (curry) e temperado com especiarias e ervas. Prosseguiu com salmão marinado e salmão defumado, camarão ao natural, filé de peixe (o Mar do Norte tem muitas espécies e os dinamarqueses são excelentes pescadores), leitão assado, minúsculas e deliciosas salsichas, rosbife com “remoulade” e cebola frita, filé mignon com cogumelos e cebola, patê de fígado bem condimentado e bacon. Por fim, a indefectível "frikadeller" (frikédêla), talvez a comida mais popular de todas, almôndega de carne de boi, de frango e até de peixe. Tudo acompanhado por vinho chileno e australiano (a coisa aqui é globalizada mesmo). Biscoitos, queijos e salada de frutas encerraram nossa gastronômica aventura por mares (nórdicos) nunca dantes navegados.
A gastronomia revela muito do caráter de um povo e a cozinha da Dinamarca é como seu famoso design industrial: simples, prática, democrática, universal. “God appetit”.
Cinco lagos, um retângulo líquido dividido por quatro pontes que se estende por mais de três quilômetros, dividem o centro de Copenhague entre Norte e Sul. De um lado, Nørrebro, de outro a City, o centro histórico, onde ficam os palácios reais, o parlamento os principais museus e o Tívoli. A Leste fica Østerbro, o bairro da Pequena Sereia, do Kastellet (antiga fortificação que protegia o porto, desmilitarizada após o bombardeio inglês de 1807 durante as guerras napoleônicas), as embaixadas do Canadá e Estados Unidos. Vesterbro, a Oeste, onde está o Planetário, é o bairro preferido como residência de artistas consagrados, gente de teatro, das artes plásticas, do cinema.

É aqui, no quarto andar de um dos poucos prédios antigos que possuem elevador, numa elegante esquina de praça logo atrás do Det Ny Teater, que mora nossa amiga, uma paraense que anseia pelo próximo Natal, quando o filho que vive no Brasil e há muito não vê, virá ao reencontro da mãe e dos irmão dinamarqueses, acontecimento que certamente será muito comovente e para o qual faço votos de que seja completa a felicidade; nossa anfitriã o merece pela pessoa que é, amiga, afável, que irradia felicidade mesmo quando, eventualmente, tenha alguma contrariedade.

O apartamento de duas fachadas é amplo, confortável, com dois salões repletos de antiguidades, coisa de gente que gosta e sabe receber com um modo espontâneo, refinadamente simples, que deixa muito à vontade seus convidados, amigos que formam círculo importante, representativo do mundo artístico e intelectual desta cidade plena de arte, bom gosto e cultura. Amigos que formam clã de fanáticos admiradores. Esta é uma noite de intelectuais à roda de mesa com excelentes queijos, que ali já estavam e vinhos, uns bons outros razoáveis, trazidos pelos convidados, entre os quais, um diplomata polonês, um ilustre pianista clássico que vive em Berlim, um ator teatral recém chegado da Itália, o secretário geral do Instituto Dinamarquês de Cultura e outras pessoas, inclusive nós, eu e minha mulher acompanhados da filha, artista plástica residente neste país, graças a quem fôramos convidados.

O diretor de uma indústria eletrônica me fala de nova tecnologia de telemetria que poderia ser utilizada no Brasil. Um publicitário me indaga sobre a Amazônia e descrevo a revoada de periquitos na Ponta do Jarí, em Santarém. Forma-se uma roda para me ouvir descrever as belezas do rio Arapiúns e do encontro do Tapajós com o Amazonas. É grande o interesse sobre o Brasil e sobre a Amazônia, ambos desconhecidos, ambos fascinantes. Aproveito para esclarecer que os brasileiros não querem devastar a floresta, que têm consciência da importância ecológica delas. No entanto, na Amazônia vivem mais de vinte e cinco milhões de pessoas, cinco vezes a população da Dinamarca, gente que deseja viver dignamente e que, com toda justiça, pretende atingir com a maior brevidade a mesma qualidade de vida dos países nórdicos.

Em conversa com o secretário geral do Instituto Dinamarquês de Cultura, mostro algumas fotografias de objetos de arte e artesanato produzidos no Tapajós. Discorro sobre como Frederico Barata recolheu grafismos da cerâmica Santarém que agora são estilizados em novas formas de expressão artística. Ele se interessa e promete estabelecer contatos para organizarmos exposições desses trabalhos. Dias depois, gentilmente, o secretário me informa por telefone os contatos que fizera. Temos encontros com pessoas que estarão no coquetel de apresentação de jóias de artistas polonesas no Kunst Industri Museet e com proprietária de galeria de arte famosa por apresentar trabalhos de outros países.

Conhecemos pessoas interessantes na exposição polonesa. Já havíamos visitado o Kunst Industri, templo da arte industrial da Dinamarca que produz design utilitário limpo, escorreito, muito funcional e belo. Depois, visitamos a galeria onde artista da Eslováquia expunha interessante trabalho surrealista a bico de pena. A proprietária, muito simpática se prontifica a ceder espaço a artistas de Santarém e marcamos novo encontro, após nosso retorno de Berlim onde estaremos por alguns dias, para aprofundar o assunto. Alguns artistas tapajônicos e de todo o Pará d’Oeste possuem talento e técnica para expor na Europa e a Dinamarca pode ser ponto de partida ideal. Também, seria muito interessante promover intercâmbio com exposições de artistas dinamarqueses no Brasil. Na próxima semana faremos novos contatos nesse sentido com os amigos que fazemos a cada dia com essa gente de trato simples e fácil, muito bem educada e melhor informada, atenta para o que ocorre no mundo todo. Afinal, os navegantes vikings percorriam os mares em busca de oportunidades. Hoje percorrem o mundo todo com a mesma curiosidade treinada para os negócios e para as artes.
O campo dinamarquês lembra as planícies do interior do Paraná com sua avançada tecnologia agroindustrial. Mas não só a Dinamarca é assim. Em nosso vôo de Belém ao Rio de Janeiro onde fomos embarcar para a Europa, sobrevoamos regiões que parecem colchas de retalhos, extensas plantações e criatórios que fazem do Brasil a potência agrícola que é e graças aos quais alimenta sua população e abastece tantos outros países. De Frankfurt a Copenhague, o cenário visto de aeronave em grande altura, é muito parecido, lembra imensos jardins – onde, inclusive, se cultivam flores em larga escala – num cenário construído em séculos de amanso da terra, de animais, da natureza toda.

Depois de apreciarmos a paisagem vista de cima, agora viajamos de automóvel por campos dinamarqueses. Fomos até um lugarzinho chamado Malerklemmen, fazenda com antiga casa de feitor da época da servidão, prédio erguido por volta de 1750, típico desse período e dessa região, com grossas paredes e teto coberto por espessa camada de palha. O pé direito e as portas são baixos, para gente com um metro e sessenta e cinco que, dizem, era a altura média de então. Talvez fossem baixinhos os antepassados dos compridos nórdicos de hoje, ou os prédios foram construídos assim para manter o aquecimento durante o inverno.

Ainda há muita atividade agrícola por ali, mas o estabelecimento foi transformado em casa de chá onde se pode comer bem e apreciar mais de uma centena de tipos dessa bebida proveniente de muitos países, principalmente do Oriente. Se você gosta de passear no campo e aprecia um bom chá, este é o lugar certo e quando chegamos estava lotado, prova de que produtos de qualidade e bom serviço aliados ao charme do lugar fazem muito bem ao turismo.

Estamos no fim do verão e a colheita terminou. Grandes cilindros de feno estão espelhados pelos campos aguardando para alimentar os animais no inverno. Há muita terra dedicada à cevada, trigo, batatas, lã de ovelha, carne de porco e laticínios produzidos por gado leiteiro das raças Holstein e Jersey. Lembro da época em se consumiu muita manteiga dinamarquesa no Brasil. O terreno é plano com longas e suaves ondulações, onde não se precisa vencer montanhas que por aqui não há. Por isso e porque o gado fica estabulado no longo inverno a carne dinamarquesa é surpreendentemente macia.

Em nossas excursões vimos extensas plantações de beterraba de açúcar. A União Européia é grande produtora e exportadora de açúcar devido a importantes subsídios e restrições às importações que recentes decisões da OMC modificaram. Isto pode afetar próspero setor da economia dinamarquesa, a produção de beterraba e do açúcar derivado dessa leguminosa, possivelmente beneficiando o Brasil que, sem concorrência subsidiada, poderá vender a outros continentes.

Existem diversos tipos de faias que podem ser vistos no Jardim Botânico e nos muitos bosques e avenidas de Copenhague. São árvores grandes que produzem pequenas castanhas adocicadas, de casca decídua, macia e cinzenta, com ramos que se espalham horizontalmente formando, algumas das diversas espécies, bela copa arredondada. O hino nacional dinamarquês descreve uma terra adorável que orgulhosamente estende seus faiais. Bem, exceto em alguns bosques propositalmente plantados, é mais comum ver fileiras de motores eólicos, cata-ventos geradores de eletricidade do que faias nos campos dinamarqueses e, embora se possa ver grande quantidade de aves aproveitando sobras da colheita de verão, a vida silvestre parece extinta em sua maior parte. Os antigos faiais foram utilizados na construção de navios, desde os vikings até a esquadra capturada pelos ingleses em 1803. Hoje pisamos em belos assoalhos de faia em prédios antigos.

Papel é feito da celulose produzida pelas árvores e algumas florestas são consumidas para essa finalidade. Casas e apartamentos de Copenhague juntam pilhas de jornais e revistas que enfiam nas caixas de correio pelo menos duas vezes ao dia. Parece ser uma das formas de a sociedade se manter informada. Nunca vi tanto papel, é impossível ler tudo, mas sempre encontramos alguma promoção imperdível, como a da inauguração de loja logo ali na outra esquina oferecendo coleção de Beethoven em quarenta CDs por apenas cento e noventa e nove coroas, cerca de oitenta reais ao câmbio do dia, dois reais cada CD com música de primeira qualidade, mais barato que disco virgem. Compra inevitável. Junto, adquirimos outras gravações, o que comprova a força da publicidade impressa. Bom para madeireiros, bom para a indústria de papel e celulose, bom para editoras, gráficas e publicitários, bom para lojistas e fisco, bom para consumidores.

O campo dinamarquês é um jardim e a Dinamarca é país próspero, com a melhor qualidade de vida do planeta. As antigas florestas se foram há muito, mas quem se lembra delas, quem delas sente falta, quem chora por elas?
To be, or not to be: that is the question / Whether 'tis nobler in the mind to suffer / The slings and arrows of outrageous fortune / Or to take arms against a sea of troubles / And by opposing end them? To die: to sleep; ... (Ser ou não ser, esta é a questão: / Se, na mente, será mais nobre sofrer / Chibatas e flechas de ultrajante fortuna, / Ou enfrentar, abarcar problemas sem fim, / Aos quais, combatendo, exterminem? Morrer, dormir...).

Enquanto perambulava pelas ameias do castelo, relembrava os versos e refletia sobre o sentido do drama, sobre sua fonte de inspiração, a estória, a lenda, o local, a circunstância. Fui introduzido a Shakespeare por amigo inglês que fazia teatro amador na casa paroquial da igreja anglicana da rua Real Grandeza, no Rio de Janeiro. Embora já houvesse assistido, no cinema e no teatro, várias peças desse autor, inclusive a inesquecível encenação de Otelo pela Companhia Tonia-Celli-Autran no teatro Dulcina e, muito antes, a Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca por um grupo amador no teatro Fênix, foi esse amigo que realmente me fez conhecer e entender, um pouco, a obra de mestre William. Se você quer conhecer a alma humana, sua natureza mais profunda, leia com atenção os dramas de William Shakespeare que, além de tudo, possuem extrema beleza poética.

Sempre tive desejo de conhecer o sítio em que o autor faz desenrolar a angustia de Hamlet e foi com essa ansiedade que atravessei o fosso e penetrei os portões do Kronborg, o famosos castelo real em Helsingør (Elsinore), onde Shakespeare jamais esteve, mas que ali tem seu espírito, dando alma ao lugar. Toquei os paredões de pedra e a imagem do poeta em alto relevo numa laje do muro interno, percorri as ameias onde Hamlet encontrou o fantasma, os salões em que admoestou sua mãe, a rainha, acusou o rei, seu tio e assassino do antigo rei, seu pai, entrei na sala em que, na cena I do ato III, pronunciou o famoso monólogo, como se tudo houvesse acontecido, de fato, neste vetusto palácio, como se ficção e fato fossem uma só realidade.

Elsinore, a menos de uma hora de automóvel de Copenhague, é pequena e linda cidade dominando o ponto mais estreito do Oresund, o estratégico canal que liga o Mar do Norte ao Báltico, circunstância que induziu Érik, rei da Pomerânia, do século XV, a cobrar pedágio de todos os barcos que por ali transitassem. Os navios tinham que aportar em Elsinore, o que a transformou numa cidade comercial cujo jeito cosmopolita ainda conserva. O Kronborg, com seus verdes telhados e torres de cobre patinado, domina a cidade e o estreito. Do outro lado, a apenas quatro quilômetros, perfeitamente visível, fica a cidade sueca para a qual, numa viagem de vinte minutos, a cada momento sai um ferry-boat: Helsinborg, fundada em 1085 e palco, em 1710, da batalha final pelo domínio da Escandia nas longas guerras entre Suécia, que a queria e Dinamarca, que a possuía e desejava manter exclusivo controle do estreito.

O caminho para Elsinore, margeando o Oresund, é uma bela estrada com muitos bosques, lindas mansões e bela marinas ao longo da costa leste da Zelândia, a principal ilha dinamarquesa. A dois terços do percurso de Copenhague a Elsinore, está Luisiana com seu belo museu de arte moderna. A visita a este museu fora programada com alguns amigos interessados em ver a exposição itinerante intitulada “Uma nova vida” com trabalhos de Matisse no período a partir de sua recuperação de grave doença, quando introduziu novos conceitos artísticos, em incansável produção.

O museu é belo e belíssimo é o parque à beira-mar que o envolve de paisagens encantadoras criadas para serem vistas, através de painéis de vidro, de dentro dos edifícios em várias cotas seguindo as ondulações do terreno, obra prima arquitetônica tão ou mais importante que as obras que abriga e expõe. Quando entramos no auditório de 270 lugares para apresentações solo e de pequenos grupos, em palestras, declamações e música, um pianista estudava suas partituras em belo piano Stenway. Impressionado com o som, percorri a sala, desde junto ao pianista ao ponto mais afastado e percebi todas as nuances dos acordes com a mesma perfeição. A acústica é fantástica. São muito interessantes os dois estúdios reservados para crianças, um para pinturas e desenhos, outro para modelagem em massa e cerâmica.

Após visitarmos a apresentação de Matisse e a exposição permanente, saímos ao ar livre e percorremos o parque pontilhado de esculturas, inclusive um móbile de Caldwell, perfeitamente casadas com a natureza, o verde das árvores e gramados, o azul do mar, a vista da Suécia ao longe, a sensação de harmonia, beleza e paz.
A estação climática faz a diferença. Isto é o que me dizem: verão e inverno transformam radicalmente o caráter das pessoas, seus costumes, seu humor. Não posso dizer diferente, não vi, não constatei, permaneço aqui por apenas dois meses de verão ensolarado, com poucas nuvens e menos chuva. Esta é a época em que estão todos muito felizes, amáveis, sorridentes. Falam que devo esperar o inverno para sentir a diferença, quando todos estarão infelizes, carrancudos, macambúzios.

Algumas vezes, sentei num banco de praça para observar os passantes e conversar com os circunstantes. Todos os dinamarqueses com quem conversei foram muito cordiais, sorridentes, gentis. Já os que caminham, sozinhos ou acompanhados e os que andam de bicicleta me parecem extremamente decididos, com passo determinado, quase apressado. Os ciclistas são ameaça pública para quem não está acostumado a manter disciplina de pedestre e atenção de coelho em terra de raposa. Motoristas dinamarqueses são disciplinados, educados, atentos, já os ciclistas acham que as ciclovias - que as há por toda parte, muito boas tal como ruas e estradas - são pistas por onde jamais passam pedestres. É certo que são disciplinados, obedientes às regras de trânsito, mas a determinação e velocidade com que pedalam é impressionante, atemorizante.

A determinação e a disciplina demonstradas na via pública, o dinamarquês mantém no trabalho e em toda parte, mesmo quando está se divertindo, quando tira a roupa e entra pelado, homem e mulher na frente de quem estiver por perto, na água fria do Báltico para tomar um banho de mar de dois ou três minutos, só para ter o prazer de gozar o verão nórdico que mais se parece com inverno paulistano.

No Brasil, pouca gente fala outro idioma, mas isto é fruto de menor escolaridade. Na França, só querem falar contigo em francês, na Alemanha, em alemão, parecem não conhecerem outras línguas que não as próprias. Na Dinamarca, todas as pessoas com as quais troquei pelo menos algumas palavras falam perfeitamente a língua inglesa, muitas dominam o norueguês e o sueco que são muito parecidas ao dinamarquês, outros tantos falam alemão e outras línguas, não sendo difícil encontrar quem fale tailandês. É comum encontrar verdadeiros poliglotas que podem conversar razoavelmente em várias línguas, inclusive português brasileiro.

O dinamarquês é uns dos povos que mais viajam. Talvez como herança atávica dos vikings, gostam de percorrer outros lugares, países, continentes e não seria por outro motivo que exploradores dinamarqueses são tão afoitos e tão famosos. Mais uma vez, posso dizer que todos os dinamarqueses que conheci viajaram para outros países. É claro que países europeus e a Turquia estão mais próximo, mais em conta e me parece que Espanha é o destino preferido. No entanto, muitos viajam para a América do Norte e, depois que a Tsunami devastou a Tailândia, o Brasil entrou na moda.

Fui levar os netos na escola de manhã cedo, fui na hora do recreio, fui buscá-los à tarde, presenciei a volta às aulas no retorno das férias de verão, conversei com professores e pais de alunos. As escola são bem equipadas, confortáveis, agradáveis, onde as crianças entrem às oito e saem às treze mas podem e muitos ficam até às dezesseis horas com muito o que fazer durante nove anos. Professores são amáveis e as crianças disciplinadas, as atividades são muitas e intensas, com visitas a museus e outros pontos de interesse educacional.

Se o jovem preferir, pode ingressar numa escola profissionalizante para se tornar, por exemplo, carpinteiro ou pedreiro, profissões que pagam altos salários sem necessidade de enfrentar universidades para formação profissional em ramos mais concorridos e menos lucrativos. A educação superior é apreciada e um título de doutor dá prestígio, mas isto não obriga ninguém a cursar faculdade, nem a ter que ficar rico para ter melhor posição social. Esta diferença parece não existir ou não ser importante por aqui. Deduzi que há apenas duas classes sociais na Dinamarca, a rainha e o povo, aqui incluído o resto da família real. Ministros andam de bicicleta como todo mundo, ninguém tem empregado doméstico nem motorista, nem carros muito luxuosos. Homens e mulheres se tratam, são tratados e se comportam como iguais. Se há diferença, me parece que seja que o homem quer ser mais doméstico do que a mulher, se interessa mais pela cozinha, por trocar falta dos filhos. Mulheres andam com os filhos pequenos em carrinhos, homens os levam no colo e com muito carinho.

Este é um país igualitário. Acho que é mais ou menos assim que sente, age e é o povo dinamarquês: não é que eu não seja melhor do que você, condescendendo direito meu; você é que não é melhor do que eu, porque não deixo, não cedo meus direitos ou minha dignidade.

As diferenças, e as há, como em toda parte, talvez estejam mais no papel social dos indivíduos, na forma como impactam a sociedade nos diversos ramos de atividade. Um fisioterapeuta, mostrando fotografia de um homem no jornal, falou com admiração do feito do amigo premiado por sua tese de doutorado. Ambos são amigos, iguais e se admiram mutuamente. A sutil diferença está na contribuição social de um e de outro, assim como a admiração e respeito que se tem pelo milionário que patrocinou a construção do Operaen, o moderníssimo, belo e funcional teatro de ópera de Copenhague, não pela riqueza dele, que não ostenta, mas pelo gesto, que o enobrece.
Até recentemente, a Dinamarca era um país uniforme, monorracial, monocultural, com religião única. É verdade que seja um país democrático, igualitário e tolerante, mas parece estar incomodado com a presença de tantos estrangeiros que para cá vêm se aproveitar - e alguns abusar - de seu sistema social quase perfeito, contribuindo para aumento de carga fiscal das mais elevadas. Em grande parte isto se deve a imigrantes de países igualmente monorraciais, monoreligiosos e monoculturais que dificilmente se integram à cultura e costumes locais e se fecham em comunidades isoladas, em suas próprias culturas, seus costumes, religiões e relações matrimoniais.

O Brasil, por ter recebido influxo de muitos povos, do mundo inteiro é multiétnico, multicultural, extremamente tolerante e receptivo a outros povos, outras religiões e outros costumes. Algum crítico pode apontar casos de preconceito, mas essa é a exceção, não a regra. A miscigenação faz do Brasil verdadeira democracia racial onde todos se toleram, se gostam, se amam, trabalham e brincam juntos. Muitos dinamarqueses apreciam o jeito brasileiro de ser, integrável, permeável, expansivo, carinhoso, comunicativo, divertido, o que faz da colônia brasileira exceção que só seria percebida por estas qualidades, não fosse pelas características raciais, na maioria, bem diferente das dos nórdicos.

Brasileiros e dinamarqueses se gostam e se admiram porque se surpreendem uns com os outros. Ouvi uma senhora dinamarquesa dizer que o dia mais emocionante de sua vida foi o em que chegou ao Recife e foi recebida com tamanho carinho e intimidade, com tanto calor humano que a comoveram profundamente e tornaram aquele momento inesquecível. É essa qualidade de ser tão receptivo a outros povos que torna o brasileiro bem recebido em toda parte, especialmente neste país tão esquematizado, ordenado, tão enquadrado em suas normas, mas que gostaria muito de expandir sua liberalidade de costumes numa exuberância de comportamento mais próxima do jeito brasileiro de ser.

Tive o prazer de conhecer na embaixada brasileira, na recepção por ocasião do Dia da Independência, um dinamarquês com sobrenome brasileiro, adotado da esposa e pelo qual é conhecido por seus compatriotas embora os brasileiros o chamem pelo primeiro nome. Adotar nome de esposa é procedimento legal, mas não comum, na Dinamarca ou no Brasil, o que diz bem da personalidade deste simpático consultor turístico, fundador de associação cultural brasil-dinamarquesa e respectiva escola de samba bastante popular, organizador de quadrilhas de São João e carnavais dinamarqueses super abrasileirados que promove o entrelaçamento das duas culturas com o que ambas têm de melhor e mais divertido.

Outro amigo me mostra a primeira página do caderno cultural do principal jornal de Copenhague onde aparece, ocupando quase toda a folha, fotografia de brasileira aqui radicada, cantora de música popular. A extensa reportagem, de crítico conhecido por sua intransigência e rigor, fala de recente CD realizado pela cantora e lança elogios sem conta à sua afinadíssima voz, à emocionante interpretação, ao repertório bem escolhido, à qualidade dos arranjos e a seus competentes acompanhantes, também brasileiros. Copenhague é a capital européia do jazz e da música com ele relacionado, como a MPB de forma geral. É aqui que artistas brasileiros vivem como peixes dentro d’água, é aqui que, sendo competentes e talentosos, ganham o prestígio que os lançam com sucesso a outros centros musicais europeus.

Dizem-me que velhos são solitários neste país. Acho que não somente aqui, mas que se trata de problema da época em que vivemos, em toda parte, em que pressões profissionais, novos costumes, igualdade entre sexos, tudo contribui para diminuição do lar, seja no tamanho da família, na área e numero de cômodos nas casas e apartamentos, seja no altíssimo índice de divórcios, resultando em falta de espaço e tempo para velhos. O jeito brasileiro, principalmente o de alguns brasileiros especiais, faz deles agentes sociais preciosos no cuidar de idosos e é interessante observar como um bom número, na maioria mulheres, se dedica profissionalmente ao serviço de anciãos nas excelentes casas a eles dedicados.

Mas encontrei brasileiros de várias profissões, antropólogos, sociólogos, artistas plásticos, músicos, engenheiros contratados tanto por empresas brasileiras quanto dinamarquesas para aqui virem trabalhar, sinal do alto nível da engenharia brasileira. Um destes, que reconheci como patrício por falarmos português com nossos acompanhantes na rua, trabalhara aqui por cerca de cinco anos e estava de mudança para a China a serviço de empreiteira brasileira.

Por tudo que pude observar, brasileiros na Dinamarca se integram e contribuem positivamente para a vida deste país dando a ele o que de melhor possuem de nossa cultura e se beneficiam de tudo o que esta nação tem a oferecer a si própria e ao mundo. Casamento perfeito.

* Artigo publicado em O Estado do Tapajós, jornal diário de Santarém, Pará, onde Autor (75) escreve sobre temas de interesse geral, principalmente amazônicos.